ARACAJU/SE, 29 de dezembro de 2025 , 18:36:47

Entenda por que cada vez mais estrangeiros vêm ao Brasil para cuidar da saúde

 

Com a expectativa de fechar o ano com 9 milhões de visitantes internacionais, o Brasil superou as metas do Instituto Brasileiro de Turismo (Embratur), batendo um recorde histórico. Finalmente o país ultrapassou a marca dos 6 milhões de turistas, na qual ficou estacionado por anos. O curioso é que, mesmo com a alta na demanda, ainda ficamos atrás de nações muito menores, e que estão longe de ser destinos turísticos populares, como Tunísia e Bulgária.

Não que falte reconhecimento aos atributos nacionais. O Brasil figura entre os 15 países com mais patrimônios da Unesco, por exemplo. Ainda assim, estima-se que, em um ano, mais gente visite a Basílica de São Pedro, no Vaticano, do que o Brasil inteiro.

Um passo de cada vez. Esse crescimento recente pode não ter feito do Brasil um destino de primeira grandeza, mas representou o maior salto de visitantes internacionais no ano no mundo todo. Com alta de 48,2% no primeiro semestre, nenhum país teve aumento tão grande no turismo, dentre os 50 mais visitados do mundo, segundo a Embratur.

Um segmento ainda desconhecido tem sua parcela de contribuição para essa subida. Não é o ecoturismo, com os parques nacionais e a espetacular biodiversidade brasileira. Muito menos a agenda cultural ou o turismo de negócios. O Brasil, cada vez mais, tem se tornado um destino de turismo de saúde. A qualidade dos serviços e os preços atrativos viraram, quem diria, um ímã de estrangeiros.

Caipirinha, praia e consulta

De acordo com um levantamento da empresa de pesquisas de mercado Imarc, o setor de turismo médico no Brasil movimentou US$ 3,1 bilhões em 2024, com estimativa de que chegue a US$ 14,8 bilhões até 2033. São Paulo, com maiores e melhores ofertas de hospitais, clínicas e mais conexões aeroportuárias, é o principal destino dessas viagens. A cidade tem 27 unidades certificadas pela JCI. É mais que o Japão, que tem 24.

Segundo a SP Negócios, agência de promoção de investimentos na capital paulista, cerca de 264 mil pessoas vieram do exterior para o Brasil por motivos de saúde entre janeiro e agosto de 2025. Estima-se que a cidade, que em novembro sediou a primeira edição do Summit de Turismo Médico, deverá faturar R$ 211 milhões com esse tipo de turismo em 2030, um crescimento de 112% em relação a 2024.

Atualmente, cerca de 12% de quem vai a São Paulo se enquadra nesse tipo de viagem. Segundo Carolina Uip, sócia-fundadora da B.Treat, empresa que presta assessoria e acompanhamento a pacientes nacionais e internacionais, em grande parte dos casos os turistas que vêm de fora têm algum vínculo com o Brasil. “O perfil predominante ainda é o de brasileiros que moram no exterior, especialmente Estados Unidos e Portugal. Ou de estrangeiros com laços com o país”, explica.

Foi o caso do americano Greg Reid. Ele estava se preparando para passar longas férias no Rio de Janeiro com sua esposa, que é carioca, quando quebrou um dente da frente. Após ver os preços nos EUA, ele decidiu esperar e fazer o tratamento no Brasil. “Fiquei muito feliz por ter aguardado. Por menos da metade do que pagaria nos EUA, tive um pequeno time de três dentistas fazendo um trabalho miraculoso”, lembra. Ele disse que ficou impressionado com a paciência e o cuidado, além dos equipamentos usados. “Com certeza voltaria para tratar qualquer necessidade nos dentes. Não que eu precise de uma desculpa, já fui umas 20 vezes para o Rio nos últimos 20 anos, é meu lugar preferido no mundo”.

O australiano Neil Be, pouco antes de se mudar para o Brasil, escutou de um “respeitado dentista” em seu país que tinha que tratar dez cáries. “Mas fui a um consultório no Brasil, ouvi que não tenho cárie alguma e que talvez precise usar aparelho para corrigir a mordida, algo que ninguém tinha me falado na Austrália”, lembra. Além disso, a consulta e a radiografia foram grátis, algo que, segundo ele, não existe em sua terra natal.

Nas redes sociais, não é difícil encontrar depoimentos semelhantes. A lutadora de MMA russa Yana Santos alfinetou os preços da saúde nos EUA, onde mora, ao postar, no X, que estava de viagem marcada ao Brasil não para uma luta nem para passar férias, mas para uma consulta. Mais uma vez, trata-se de alguém com vínculos com o país: ela é casada com o brasileiro e também lutador Thiago Santos.

Uip explica outro padrão desses turistas internacionais. “Para pacientes dos mercados norte- americano e europeu, o foco tende a ser voltado a estética, fertilização, odontologia e medicina preventiva”. O Brasil é reconhecido, há anos, pelos tratamentos estéticos, como lipoaspiração, rinoplastia, abdominoplastia e rejuvenescimento facial. Segundo um levantamento da publicação especializada Patients Beyond Borders, dos mais de 2 milhões de plásticas feitas no Brasil em 2024, 7% foram para atender pessoas que vieram do exterior.

Já quem vem dos países vizinhos ou dos africanos de língua portuguesa costuma procurar tratamentos de alta complexidade, principalmente em oncologia, cardiologia e ortopedia. Isso faz toda a diferença nos custos da empreitada. Por isso, quando possível, muitos buscam aliar o tratamento a uma viagem de férias. Consequentemente, algumas dessas clínicas que vêm se especializando em receber estrangeiros às vezes têm sites que, à primeira vista, poderiam ser confundidos com agências de turismo, com fotos de praias e outras alusões do tipo.

Beleza, higiene e consumo

Mas o que explica, afinal, o apelo brasileiro para o turismo de saúde? É possível que os nossos próprios hábitos ajudem a explicar o fenômeno. Dados indicam que brasileiras e brasileiros são obcecados pela aparência e têm costumes de higiene e cuidados pessoais mais arraigados do que outros povos. Dados de 2025 da Euromonitor indicam que, com cerca de 12 banhos semanais, ninguém entra debaixo do chuveiro com tanta frequência. Uma pesquisa de 2021 encomendada pela multinacional de bens de consumo P&G (Procter & Gamble) mostrou que o brasileiro escova os dentes três vezes ao dia, o dobro da média global. Outro levantamento da Euromonitor diz que o país é o terceiro maior mercado de produtos de beleza, e o relatório mais recente da Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética (Isaps, na sigla em inglês) apontou que o Brasil é onde mais se faz plásticas: em 2024, quase um de cada dez procedimentos estéticos no mundo aconteceu aqui.

Em um país desigual, os cuidados pessoais têm peso socioeconômico e cultural. Thais Machado Borges, professora de estudos latino-americanos na Universidade de Estocolmo (Suécia), explica, em um artigo sobre o tema, que o consumo por meio do corpo (dietas, modas) e em torno do corpo (spas, tratamentos, cirurgias) “são meios simbólicos e materiais de se posicionar dentro das hierarquias sociais brasileiras contemporâneas de gênero, classe e raça”. Segundo ela, “alterações na aparência física podem ser vistas como indicadores de status social”.

Com a demanda, oferta qualificada

Décadas e décadas olhando para os cuidados pessoais e a estética de um jeito único contribuíram para que o Brasil desenvolvesse o mercado profissional. A terra de Ivo Pitanguy, mago das cirurgias plásticas, e da “depilação à moda brasileira” é também um país com cada vez mais faculdades, hospitais e clínicas de renome.

Atualmente, 77 centros médicos brasileiros têm o selo da Joint Commission International (JCI), entidade que garante padrões internacionais de qualidade e segurança. Embora a maioria desses hospitais e clínicas esteja concentrada no eixo Rio-SP, há representantes de Porto Alegre a Belém, passando por capitais menores (Florianópolis e Aracaju) e cidades do interior, como as paulistas Campinas e Sorocaba. O Brasil tem muito mais instituições reconhecidas, por exemplo, do que países ricos como a Itália, com 29.

Esse reconhecimento passa cada vez mais, também, pela formação acadêmica. Se em rankings gerais de universidades o país está longe do topo (quando aparecem em listas de 100+, elas ficam lá para o fim), em avaliações específicas algumas faculdades se destacam. Em 2025, os cursos de Enfermagem e Medicina da Universidade de São Paulo (USP) ficaram em 47º e 58º, respectivamente, no ranking universitário QS, que avalia os melhores cursos do mundo em diversas áreas.

Já a formação odontológica tem ainda mais reconhecimento internacional. A edição mais recente do QS teve os cursos de Odontologia da USP em 13º, o da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) em 26º e o da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em 39º. Em 2024, as universidades federais do Rio de Janeiro (UFRJ), do Rio Grande do Sul (UFRGS), de Santa Catarina (UFSC) e de Pelotas (UFPel) também apareceram entre as 100+.

Outra avaliação, o EduRank, que engloba mais de 14 mil universidades do mundo todo, colocou a Faculdade de Odontologia da USP no topo – e pelo segundo ano seguido. Unesp e Unicamp, além da Federal de Minas Gerais (UFMG), também figuraram na lista.

O Conselho Federal de Odontologia (CFO) implantou em 2024, ainda em fase de teste, um exame nacional de proficiência para avaliar os recém-formados. Isso porque, mesmo em uma realidade que conta com algumas faculdades de renome internacional, o crescimento de profissionais na área exige uma análise mais dedicada de todo o cenário universitário. Hoje, segundo o CFO, o Brasil tem 426 mil cirurgiões-dentistas, um aumento de 60% em dez anos.

Desde a pandemia, Florianópolis se tornou um polo russo no Brasil. A capital catarinense recebeu cerca de 25% dos imigrantes que vieram ao país. São pessoas que querem distância da guerra com a Ucrânia e buscam qualidade de vida, segurança e um dos passaportes mais poderosos do mundo: brasileiros podem entrar em 170 países sem a necessidade de visto. Por isso, muitos desses imigrantes são casais grávidos. Bebês nascidos no país têm direito à cidadania brasileira, e seus pais podem se naturalizar em um ano. No Recife, que também têm recebido russos, já existe até agência especializada em atender esse público, vendendo pacotes para ajudar os casais a se instalarem na capital pernambucana, com direito a busca por imóvel, documentos e inscrição no SUS. Os serviços gratuitos do sistema brasileiro também estão entre os diferenciais que atraem imigrantes.

Resumo da ópera? Os brasileiros cuidam mais da saúde e da higiene do que a média mundial. Eles vão muito ao dentista, e o Brasil tem cada vez mais dentistas (mais que em qualquer outro lugar). Além disso, o país tem cada vez mais faculdades listadas entre as melhores do mundo. Junte a isso um câmbio atraente e o investimento em serviços para receber pacientes de outros países e temos um cenário promissor para o turismo odontológico (e o de saúde, por que não). O boca a boca, com o perdão do trocadilho, faz o resto.

O potencial de crescimento do Brasil – e os entraves

Em 2024, o CFO lançou uma campanha para atrair mais estrangeiros e capacitar os dentistas brasileiros para atendê-los. No país, os custos de implantes, restaurações e procedimentos estéticos podem ser até 20% menores do que nos EUA, segundo a entidade. Mas apenas preços bons e atendimento em inglês não fecham a conta.

O CFO defende que é preciso oferecer estadia próxima ou de fácil acesso, pré-consultas online, lista de exames para fazer no Brasil ou no país de origem, informações sobre voos, seguros, visto e quaisquer outras dicas que ajudem a tranquilizar os potenciais pacientes. A organização acredita que transformar o Brasil em um ponto turístico odontológico, que se destaque em serviços como harmonização orofacial e aplicação de resinas e lentes de contato dental, pode “pavimentar um futuro próspero para a classe”: a ideia, com essa internacionalização, é atrair também dentistas estrangeiros para fazer cursos de especialização no Brasil.

Para isso, os profissionais do setor devem investir em capacitação. Comunicação em mais de um idioma e uma agenda flexível, que facilite a vida do paciente com o máximo de consultas e procedimentos possível, a fim de reduzir os deslocamentos, fazem a diferença. Porém, dentistas e médicos, sozinhos, não vão fazer do Brasil um polo de saúde. Isso envolve outros setores.

Para começar, é preciso investir em hospedagem. São Paulo deverá ganhar, em 2027, seu primeiro hotel de luxo especializado em saúde. O empreendimento ficará em um complexo imobiliário na Marginal Pinheiros, que incluirá o novo centro de oncologia e hematologia do Hospital Albert Einstein.

“Temos centros médicos de excelência, mas carecemos de uma rede coordenadas de serviços que conecte hospitais, clínicas, hotéis e operadores de saúde”, diz Carolina Uip, sobre os desafios para atrair mais turistas ao Brasil para tratar da saúde

Nada impedirá alguém que for a São Paulo, seja para um festival de música ou um evento esportivo, de se hospedar no hotel. Mas o foco é o turismo de saúde, explica Roberta Pfiffer, sócia-fundadora da B. Treat, uma das empresas por trás do empreendimento. Os quartos terão banheiros planejados, camas com alturas adequadas para o paciente, mobiliário adaptável, copa para o preparo de refeições de dietas restritivas e espaço para camas extras, para cuidadores.

De acordo com Uip, ainda falta uma maior integração entre os setores de saúde, turismo e hospitalidade. “Temos centros médicos de excelência, mas carecemos de uma rede coordenada de serviços que conecte hospitais, clínicas, hotéis e operadores de turismo de forma fluida e segura para o paciente estrangeiro”, diz. Além disso, segundo ela, o país não tem políticas públicas específicas, como incentivos fiscais, campanhas no exterior e marcos regulatórios, que incentivem o posicionamento do Brasil como destino de saúde.

Os custos do turismo de saúde

O Brasil oferece preços que podem ser até 70% mais acessíveis que em mercados tradicionais. Segundo a SP Negócios, quem vem do exterior por motivos de saúde desembolsa, em média, US$ 9 mil em São Paulo. É nove vezes mais do que o gasto daqueles que saem de uma cidade brasileira para se tratar na capital paulista. Os valores também variam um bocado de acordo com o serviço. Em casos de baixa complexidade, como procedimentos odontológicos ou pequenas cirurgias estéticas, os gastos costumam ficar entre US$ 2 mil e US$ 4 mil, incluindo parte da hospedagem e acompanhamento pós-tratamento, explica a B.Treat. Já nos de média complexidade, como cirurgias plásticas combinadas, ortopédicas ou tratamentos de fertilidade, o custo tende a ficar entre US$ 5 mil e US$ 10 mil, ainda significativamente mais barato do que nos EUA ou na Europa. Nos casos de alta complexidade, como cirurgias cardíacas, oncológicas ou neurológicas, o valor pode ultrapassar US$ 20 mil, dependendo do hospital e do tempo de internação.

É diferente do que acontece, por exemplo, na Turquia. Lá, há investimento institucionalizado, com direito a campanhas publicitárias que firmaram a imagem de Istambul como capital mundial dos transplantes capilares – mais um procedimento em que o Brasil também tem se destacado nos últimos anos. “O país ainda não explora toda a força da sua medicina, que em termos de qualidade é incomparavelmente superior à turca”, diz a empresária.

O desafio, mais uma vez, está no turismo como um todo, porque, nisso sim, a comparação escancara uma superioridade brutal. A Turquia é um dos países mais visitados do mundo, com 60 milhões de turistas estrangeiros chegando todo ano, mais de seis vezes o recorde histórico brasileiro. No turismo de saúde, o pacote “Istambul para carecas” ainda é muito mais comum e famoso do que o “Pão de Açúcar com dentista”. Mas o Brasil tem muito espaço para crescer.

Fonte: GALILEU

 

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