ARACAJU/SE, 16 de setembro de 2024 , 15:57:07

Envelhecimento transforma demência num dos maiores desafios da ciência

 

Viver mais tem um bônus… e um ônus. Trata-se de “enfrentar problemas de saúde acumulados na velhice”, como resume o documento da Organização Mundial da Saúde (OMS) com diretrizes para os países oferecerem melhores cuidados aos idosos. Publicado há sete anos, ele também era um chamado para as nações articularem políticas públicas para lidar com os desafios de uma população que deve dobrar globalmente até 2050. Uma das maiores preocupações da entidade são as doenças que levam ao colapso cognitivo e à demência, sendo a mais prevalente delas o Alzheimer. Além de dilapidar a autonomia e a qualidade de vida dos pacientes, o problema impacta a rotina de parentes que se tornam cuidadores e todo um sistema de saúde que ainda engatinha para atender a essa demanda. O quadro se torna ainda mais nebuloso quando se leva em conta que por ora não existe um tratamento capaz de frear a progressão da destruição neuronal.

Desde que foi descrita pelo patologista alemão Alois Alzheimer, em 1906, a doença neurodegenerativa impõe dificuldades e armadilhas, a ponto de ainda não ser totalmente compreendida. Pelos prejuízos que acarreta, necessita de uma abordagem multiprofissional — uma realidade distante, visto que, na maioria das vezes, o problema é encarado dentro de casa apenas com o suporte de familiares. Da mesma forma que a condição ganha terreno no cérebro, gerando sintomas como perda de memória e déficits na orientação espacial, as previsões mostram que seu avanço pela humanidade é incontornável. Há 55,2 milhões de pessoas vivendo com algum tipo de demência no mundo hoje, número que deve saltar para 78 milhões em 2030 e atingir 139 milhões em 2050. Após a OMS soar o alerta, ao menos 48 países já elaboraram planos focados nos cuidados com a demência, a maioria na Europa, onde as repercussões das enfermidades ligadas ao envelhecimento são observadas há mais tempo.

No Brasil, eis a boa nova, acaba de ser sancionada a Política Nacional de Cuidado Integral às Pessoas com Doença de Alzheimer e Outras Demências, mecanismo para que seja implementado um modelo de capacitação de profissionais, tanto na rede pública quanto na privada, para atuar no diagnóstico e na assistência dos pacientes. Embora seja considerada uma conquista, só quando a lei estiver em plena execução e incorporada ao dia a dia de toda a cadeia de serviços de saúde é que a sociedade colherá seus frutos. O tempo urge. “A população de idosos é a que mais cresce, e a projeção é que as demências aumentem cinco vezes em países de baixa e média renda, como o nosso”, diz a geriatra Celene Pinheiro, presidente da Associação Brasileira de Alzheimer (ABRAz).

Em um território com proporções continentais, ter o Sistema Único de Saúde (SUS) com alta capilaridade pode ajudar a atingir as populações mais distantes, mas o trabalho precisará ter muitas camadas e inclusive contar com o corpo a corpo dos agentes comunitários, uma vez que o Alzheimer tende a isolar as pessoas. “Em vez de só trazer os pacientes para dentro dos serviços, é preciso capacitar os profissionais que vão até as casas deles”, afirma Celene. Uma das frentes a ser ampliada, por exemplo, são as instituições de longa permanência para idosos, que passam de 7.000 no país, mas se concentram nas regiões Sul e Sudeste. A maioria é privada e com valores mensais que não cabem no orçamento de assalariados e aposentados.

Em geral, esses espaços são concebidos para indivíduos com maior dependência nos afazeres diários. “Mas é possível ter gradações de acordo com a autonomia do idoso e oferecer um ‘centro-dia’, onde ele ficará apenas um período acompanhado”, ilustra o geriatra João Machado, da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais. “Se formos estimar o número de pessoas que precisariam ser cuidadas por meio dessas instalações até 2035, teríamos de aumentar as vagas em 225%”, afirma o professor, que debateu as dificuldades estruturais na assistência no último congresso Brain: Cérebro, Comportamento e Emoções, realizado no Rio de Janeiro.

Também presente no evento, o ativista holandês Teun Toebes, autor do documentário Human Forever — uma jornada de três anos convivendo com pessoas com demência em onze países —, defendeu a importância de se desenvolverem modelos de acolhimento que respeitem as necessidades físicas e mentais do idoso e as características culturais do seu ambiente — seja uma clínica, seja sua residência. “Se ouvirmos as pessoas com demência, elas querem ter uma vida com sentido. Não é romantizar nem só medicalizar, mas criar uma sociedade mais inclusiva”, disse Toebes. O documentarista prescreve mais empatia se quisermos construir uma sociedade que respeite as vítimas das doenças neurodegenerativas e também seus cuidadores, que, com frequência, precisam lidar com comportamentos e decisões difíceis.

Qualquer expectativa de melhora no cenário à vista passa pelo surgimento de medicamentos realmente capazes de estancar o Alzheimer. Uma injeção de ânimo foi dada em 2021 quando, após duas décadas sem novidades, a agência reguladora americana aprovou a liberação de uma droga experimental chamada aducanumabe. Ela teria o potencial de limpar aquela que, até o momento, é apontada como a maior responsável pela doença: a proteína beta-amiloide, que se aglomera em pegajosas placas que atrofiam o tecido cerebral. A notícia gerou euforia, mas também contestação, com especialistas pedindo mais estudos.

No início deste ano, a fabricante Biogen anunciou o encerramento da produção da droga — os resultados clínicos ficaram aquém do esperado — para se dedicar a outro fármaco, o lecanemabe, anticorpo monoclonal que, em testes, demonstrou retardar em 27% a progressão do Alzheimer. As controvérsias, no entanto, seguem vivas. No Reino Unido, mesmo com a autorização para o remédio, o sistema público de saúde ainda realiza análises de custo-­efetividade antes de avalizar a incorporação do produto. Um dos questionamentos diz respeito ao investimento elevado para apenas desacelerar e não oferecer a remissão da condição.

Além disso, a indicação se limitaria aos estágios iniciais da doença, ainda sem os apagões da memória e as mudanças de comportamento, o que acaba esbarrando no desafio do diagnóstico precoce — é a esse público que também se destina outro anticorpo recém-aprovado nos EUA, o donanemabe, do laboratório Eli Lilly. Porém, diante da carência de opções, qualquer inovação, devidamente validada em pesquisas, é apreciada pelos médicos. “Se conseguirmos adiar o quadro de Alzheimer em alguns anos, teremos menos impacto funcional e perda social”, diz Celene.

Enquanto o quebra-cabeça do tratamento continua sendo montado, outra corrente de estudos se aprofunda no que é possível fazer desde cedo para que o cérebro não sofra tanto na velhice. Embora alguns casos de demência tenham forte componente genético, hoje se sabe que existem hábitos e condições de saúde que podem ser modificados para mitigar o risco da doença. O periódico científico The Lancet tem uma comissão dedicada ao tema e, neste ano, atualizou a lista de fatores passíveis de intervenção para prevenir o Alzheimer. Agora, entraram no rol de recomendações controlar o colesterol e contra-atacar a perda de visão, somando-se a orientações como domar a pressão alta, o diabetes e a depressão, por exemplo. Fato é que o horizonte se mostra ainda mais penoso em nações como o Brasil, que têm muito a fazer para remediar a baixa escolaridade e estancar doenças crônicas que alimentam a ruína cerebral com o avançar da idade. Calcula-se que, intervindo nos 14 elementos apontados pelo comitê de estudos, seria possível reduzir 54% dos casos de Alzheimer no país. Eis um desafio e tanto — e inescapável para uma sociedade que quer viver mais.

Fonte: VEJA

 

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