Treinar com constância, seguir uma planilha, manter o foco, correr mesmo sem ter dormido bem, virar maratonista da noite para o dia. A cena parece inspiradora, mas pode esconder um problema sério: o overtraining. E não, ele não atinge apenas atletas. Pelo contrário: o alvo mais comum são pessoas comuns que tentam encaixar o esporte numa rotina caótica, sem descanso adequado e acabam pagando um preço alto na contra-mão de uma saúde melhor.
“O overtraining, de forma simples, é quando o corpo entra em colapso porque você força mais do que consegue se recuperar. Não é só treino demais. É treino demais sem descanso, sem recuperação, sem nutrição adequada, somado ao estresse do trabalho, das cobranças, da vida”, explica o médico Rodrigo Schröder, referência quando o assunto é performance e saúde, com mais de um milhão de seguidores nas redes.
Schröder é direto ao falar sobre os riscos do overtraining: “Ele não destrói só o desempenho, destrói saúde. Desregula hormônios, derruba a imunidade, gera insônia, ansiedade, depressão, lesão. E o mais perigoso? Muita gente ignora esses sinais, acha que é ‘normal’ sentir isso. E não é.”
Antes do colapso, o corpo envia sinais claros: sono ruim, queda de desempenho mesmo com treinos mais intensos, cansaço persistente, alterações na frequência cardíaca e até mudanças no humor.
“O corpo fala e grita. E quem não ouve, paga caro depois. O cansaço normal passa com uma boa noite de sono. O overtraining não. É como se você vivesse cansado, arrastando o corpo, sem energia para nada.”
Do ponto de vista emocional, os impactos também são profundos. “O corpo desaba, mas a mente vem antes. Hoje, a maioria das pessoas não quebra só fisicamente, quebra mentalmente. A cobrança absurda, a comparação nas redes, a síndrome de nunca estar bom o bastante… Tudo isso leva a ansiedade, compulsão, depressão, burnout e, sim, overtraining.”
A ciência corrobora. Uma revisão publicada no Frontiers in Physiology apontou que o excesso de treinamento e a recuperação inadequada afetam o eixo HPA (hipotálamo-hipófise-adrenal), desequilibrando hormônios como cortisol, testosterona e T3, exatamente como explica o médico.
O médico também alerta sobre seguir planilhas de influenciadores ou até mesmo geradas por IA: “Planilha genérica não sabe se você dormiu 4 horas, se tem uma hérnia, se está com anemia ou se tomou antibiótico semana passada. E aí vem a conta: lesão, fadiga, queda de imunidade, tontura, burnout.”
A chave da prevenção está na periodização, algo que muitos ignoram. “Quem não periodiza, adoece. É simples assim. Treino inteligente não é só empilhar volume e intensidade. É alternar carga pesada com dias de recuperação, respeitar sono, nutrição e, principalmente, o contexto de vida da pessoa.”
E esse “contexto” é o que diferencia um atleta profissional de uma pessoa comum com um trabalho estressante, filhos e boletos a pagar. “O atleta dorme, descansa, se alimenta, faz recovery e vive pra isso. Então querer fazer os mesmos volumes, as mesmas cargas, sem a mesma recuperação, é pedir para quebrar.”
Mais do que um hábito saudável, descansar é uma estratégia de performance. Mas nas redes sociais, isso tem sido retratado como fraqueza.
“Estamos vivendo uma epidemia de adoecimento travestida de superação. As redes sociais colocaram na cabeça das pessoas que descansar é fracasso. E isso é uma grande mentira. O descanso não é pausa no treino. O descanso É treino. É quando o corpo reconstrói, adapta, evolui. Sem isso, só vem lesão, exaustão, queda hormonal e frustração.”
Embora nenhum exame isolado diagnostique o overtraining, um painel clínico bem interpretado pode revelar o risco com antecedência. Entre os marcadores estão cortisol cronicamente alto, testosterona baixa, T3 reduzido, ferritina despencando, frequência cardíaca basal elevada e baixa variabilidade da frequência cardíaca (HRV), além de indicadores inflamatórios como PCR e enzimas musculares como CK.
O maior alerta é para quem começou a treinar buscando saúde, mas virou refém da cobrança de performance. “O esporte tem que te fazer mais saudável, mais disposto, mais feliz, não te transformar em um paciente crônico de lesão, exaustão ou burnout.”