Os filmes Tropa de Elite I e II, dirigidos magistralmente por José Padilha, com interpretação soberba de Wagner Moura e grande elenco, demonstram de forma didática como se dá o combate ao narcotráfico nas comunidades (favelas) do Rio de Janeiro. Desnuda a desonestidade e os abusos policiais, além da promiscuidade dos políticos com o crime organizado, deixando em desalento o telespectador que não vislumbra saída para um problema complexo e com raízes profundas, um misto da verdadeira formação do Brasil, com exclusão, violência, exploração, corrupção e autoritarismo.
Todo esse cenário é apresentado ao som da música da banda Tihuana, que de forma frenética alerta que “Tropa de elite, osso duro de roer; Pega um pega geral, e também vai pegar você”. Não existe qualquer alternativa para combater o tráfico de drogas, de armas e a exploração de caça-níqueis nas favelas, senão valendo-se dos métodos do Capitão Nascimento. As confissões são obtidas com um saco na cabeça, as prisões ocorrem sem mandados judiciais, buscas e apreensões são realizadas a qualquer hora do dia ou da noite, mortes são decretadas por um verdadeiro tribunal de rua e somente posturas enérgicas são capazes de combater esse tipo de criminalidade.
Esse discurso se mostrou absolutamente falacioso, ineficaz e arbitrário. Serviu para eleger políticos inescrupulosos, enriquecer empresários que tinham esquemas com o envolvimento de policiais e não reduziu o tráfico de drogas e a violência nas favelas. Inúmeros inocentes tombaram. Todo dia uma bala perdida acerta uma criança na escola ou na creche, uma mulher grávida e um trabalhador sem antecedentes.
Essa banalização das operações policiais que usa padrões distintos na abordagem de um morador de comunidade e de um morador da zona sul, resultou nõ ajuizamento de uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF nº. 635/RJ), proposta pelo PSB perante o Supremo Tribunal Federal.
Referida ação traz para o centro do debate a necessidade do respeito aos direitos humanos fundamentais, relembrando ao STF que o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) com sede em San José, capital da Costa Rica, no caso da “Favela Nova Brasília”, por não observar técnicas policiais mínimas na ocupação de território, resultando na morte e prisão de inocentes, havendo alteração da cena do crime, ausência de comunicação dos fatos de forma adequada às autoridades competentes, fraude processual, dentre outras anomalias que contribuem para o elevadíssimo índice de letalidade policial nessas incursões ou operações feitas nas favelas brasileiras.
Foi preciso bater às portas da Suprema Corte para obrigar o escrutínio do modus operandi da polícia brasileira. O resultado foi um julgamento que desaguou pela primeira vez em um voto conjunto (per curiam) reafirmando-se que “o STF tem compromisso com os direitos humanos e com a segurança pública de todas as pessoas, inclusive das que moram em comunidades pobres, que têm os mesmos direitos que as demais” (manifestação do Presidente do STF).
Embora chegue a ser constrangedor obrigar o STF a se reunir durante diversas sessões (o processo foi pautado e retirado de pautas várias vezes após o voto do ministro Relator, sendo construído o consenso que resultou na decisão per curiam) para dizer coisas óbvias como a inexistência de incompatibilidade entre combate ao crime organizado e a defesa dos direitos humanos, que a segurança pública é direito de todos e os direitos humanos fundamentais, também, e, vejam só, que a nossa Constituição Federal de 1988 consagra o princípio da isonomia, afirmando que todos são iguais perante a lei, independente da classe, escolaridade, local de residência, ancestralidade e condição econômica.
O ministro Flávio Dino chegou a arrancar aplausos (situação inapropriada durante um julgamento, inclusive) ao verbalizar uma platitude, afirmando que o crime organizado não está só nos morros, pois também habita o asfalto e frequenta os palácios.
Mesmo diante de tantas obviedades, referido julgamento representa um marco para os defensores dos direitos humanos. Quem estuda a matéria sabe como é difícil cada conquista, como é preciso provocar a CIDH para combater as diversas omissões existentes no estado brasileiro, como a resistência às boas práticas pela polícia e outros órgãos estatais tornam aqueles que batalham pelo respeito aos direitos humanos verdadeiros dom-quixotes lutando contra moinhos de vento.
Em seu último livro “Colonialismo Y Derechos Humanos” o grande penalista argentino Eugenio Raúl Zaffaroni, ex-juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos (2016-2022) e ex-ministro da Suprema Corte argentina (2002-2014), nos ensina que para preservar a memória da luta na defesa dos direitos humanos é preciso criar um “patrimonio cultural criminal de la humanidad” e que “los derechos humanos siempre se obtinen mediante la lucha e, la lucha por el derecho nunca cesa y está a cargo de los pueblos victimizados” (Buenos Aires: Taurus, 2023, p. 23).
Portanto, deve-se comemorar a decisão do STF que, mesmo longe do ideal, materializou providências a serem adotadas pelo estado, delimitou responsabilidades, reafirmou evidências e enfatizou a impossibilidade de continuar adotando a técnica do avestruz, fingindo que os abusos policiais, que as chacinas, massacres e graves violações aos direitos humanos não existem ou ainda que o cumprimento de vários tratados e convenções que o Brasil é signatário deve ocorrer de forma facultativa, sendo ignorados pelas autoridades públicas.
Desta forma, estabelecer providências como: i. proteção de escolas e hospitais com isolamento do perímetro antes de deflagrar a operação policial; ii. uso de práticas voltadas à redução da letalidade policial; iii. uso obrigatório de câmeras nos uniformes e viaturas policiais; iv. observação dos preceitos contidos na Lei nº. 13.060/2014 que determina que as polícias priorizem a utilização dos instrumentos de menor potencial ofensivo, desde que o seu uso não coloque em risco a integridade física ou psíquica dos policiais; v. publicação de dados sobre mortes de civis e policiais; vi. preservação de locais de crime com comunicação ao Ministério Público; vii. fortalecimento da autonomia das perícias criminais; viii. assistência obrigatória à saúde mental dos policiais; ix. definição de critérios para afastamento preventivo dos policiais envolvidos em mortes; x. regras para buscas domiciliares; xi. obrigatoriedade de relatórios detalhados ao fim das operações; xii. investigação realizada pelo Ministério Público nos casos de suspeita de crimes contra a vida praticados por policiais com o compartilhamento de informações.
Essas doze medidas fixadas na decisão per curiam significam um relevante passo para se iniciar a implementação de uma política de respeito aos direitos fundamentais nas operações policiais.
Cabe a sociedade continuar atenta, fiscalizando o cumprimento da decisão do STF, denunciando os abusos e lutando para a existência de Direitos Humanos para todos, reafirmando a perplexidade do dramaturgo e poeta alemão Bertold Brecht, que vaticinou: “Que tempos são estes, em que temos que defender o óbvio?”