ARACAJU/SE, 11 de maio de 2025 , 9:15:16

A Carta de Bronze

Em 1906, na sucessão de Rodrigues Alves (1848-1919), deu-se a primeira grande dificuldade operacional do sistema sucessório presidencial brasileiro. O presidente preferia que seu sucessor fosse o governador paulista Bernardino de Campos (1841-1915), mas a força dos produtores de café chamou ao Catete alguém disposto a fortalecer essa cultura, com subsídios até então recusados pelo governo federal. Escolheram, assim, Afonso Pena (1847-1909) e seu vice, o governador fluminense Nilo Peçanha (1867-1924). Foi uma eleição sem opositores.

O governo Pena, além de saldar a expectativa dos fazendeiros, cumprindo os termos do Convênio de Taubaté, instrumento que incorporava responsabilidades federais ao financiamento da cafeicultura, foi o primeiro a se preocupar programaticamente com a interiorização e a integração regional do Brasil. Talvez pela procedência mineira, longe do litoral, ele priorizou a construção de ferrovias e a expansão da rede de telégrafos. Cândido Rondon (1865-1958) teve especial destaque nesse período.

Pena, como era de se esperar, queria fazer seu sucessor e o seu favorito era o ministro da Fazenda, o também mineiro David Campista (1863-1911). Havia, no entanto, outros pretendentes ao posto, destacadamente, o ministro da Guerra, o marechal gaúcho Hermes da Fonseca (1855-1923). Hermes era apoiado por Pinheiro Machado (1851-1915), senador seu conterrâneo, figura-chave da política daqueles idos, por sua enorme liderança no Congresso Nacional, onde, mais do que ser um prócer do Rio Grande do Sul, capitalizava o apoio da maior parte dos congressistas de estados menores. No curso dessa disputa surda, em reunião tensa, Hermes da Fonseca, em maio de 1909, demitiu-se e abriu um racha nas hostes governistas.

Semanas depois, em 14 de junho de 1909, Pena, acometido por uma pneumonia, fragilizado pela perda de um filho e de um irmão em curto tempo, e sob intensa pressão nas questões de Estado, morreu. Nilo Peçanha assumiu o Catete, para concluir o mandato.

Parêntesis. Peçanha é uma figura peculiar. Era de origem humilde (seu pai era padeiro) e sua tez não era clara. Seria hoje identificado como pardo, o que faz dele o primeiro e único presidente negro do Brasil. Há vários indícios de sua ascendência miscigenada, um dos quais a resistência da família de sua esposa a aceitar o casamento, que teve de ser feito às escondidas (mesmo sendo ele, à época, deputado federal em segundo mandato). Era chamado de mulato na imprensa. Mas, a iconografia resgatada dificulta essa identificação, dado o uso do pó de arroz nas fotos oficiais (o que é prova, por outro lado, do racismo desde sempre presente neste país).

O mandato de Peçanha não foi além da continuidade do que deixara o seu antecessor. Mas foi nele que se travou a Campanha Civilista. Opunha-se a Hermes da Fonseca, finalmente ungido candidato do governo, o baiano Rui Barbosa (1849-1923), um liberal reconhecido por sua inteligência e respeitado nos ambientes que frequentava. Senador sucessivas vezes, havia participado, destacadamente, da Conferência de Haia, em 1907. Fora eleito presidente da Academia Brasileira de Letras, em 1908. Ele chegou a esperançar ser o nome do governo, eis que havia desistido da campanha presidencial anterior, em favor de Pena, além de ser próximo de Pinheiro Machado, mas foi preterido.

Preterido, mas não convencido. Lançou candidatura, assim mesmo. Foi a primeira campanha de verdade que se viu por aqui. Rui abrira a disputa escrevendo uma carta, em maio de 1909, a Francisco Glicério (1846-1915) e a Antônio Azeredo (1861-1936), lideranças políticas daquele tempo: a Carta de Bronze. Por ela, desqualificava a pretensão do adversário, dizendo as razões pelas quais um militar sem experiência política não poderia exercer o poder (a memória dos dois presidentes iniciais e seus governos catastróficos ainda era presente). Disse nela:

“A Conferência de Haia me deu a ver o espetáculo vivo da importância das armas entre as potências reunidas para celebrar a paz. […] Mas por isso mesmo que quero o Exército grande, forte, exemplar, não o queria pesando sobre o governo do país. A nação governa. O Exército, como os demais órgãos do país, obedece. Nesses limites é necessário, é inestimável o seu papel; e na observância deles reside o seu segredo, a condição de sua popularidade. O Exército certamente o sabe. Não quererá outra função.”

Rui conseguiu o apoio valioso do Partido Republicano de São Paulo, cujo governador, Albuquerque Lins (1852-1926), fechou sua chapa como vice. Comícios atraíam os cidadãos para ouvir os candidatos oposicionistas. Ele viajou a Minas Gerais, a São Paulo e à Bahia para falar nas ruas. Era algo inovador. Rui incorporava algumas pautas civilizatórias em seu discurso: voto secreto, regulação das intervenções federais (ferramentas de proteção das oligarquias e do poder presidencial). Defendia uma legislação que garantisse a independência da magistratura e que moralizasse o orçamento nacional. Dialogava com as classes médias.

Mas era o tempo das fraudes, do voto de cabresto e do poder dos coronéis. O resultado da eleição de  1° de março de 1910 foi a vitória de um militar sem grandes virtudes públicas conhecidas e a derrota de um dos maiores vultos do pensamento nacional. Hermes da Fonseca teve 403.867 votos reconhecidos, contra 222.822 de Rui Barbosa. Foi eleito também o vice-presidente da chapa do governo, o mineiro Wenceslau Braz (1868-1966), com 406.012 votos (mais do que Hermes, portanto), contra os 219.106 de Albuquerque Lins.

Rui formulou, então, a primeira contestação a um resultado eleitoral presidencial da história brasileira. Acusando Nilo Peçanha de haver realizado coações, especialmente em Minas Gerais, declarou que, além das vitórias em São Paulo e na Bahia, que o resultado oficial lhe declarara, também vencera em Minas, no Rio de Janeiro e no Distrito Federal, alcançando, assim, mais votos do que o seu adversário. Apesar de verossímeis, as alegações foram rechaçadas e o Brasil foi administrado pelo seu terceiro presidente militar da ativa, nos anos seguintes. Mais adiante, haveria outros. Sem votos populares, inclusive. Infelizmente.