João de Zé Pinga-da-Boa andava sem serventia, igual a árvore de cemitério, que só fazia sombra pra defunto. Passava dos sessenta anos, labutando em roças alheias. Fim de carreira. Troncho, a coluna vertebral em desalinho e com dores intermitentes. Remédios do mato e de farmácia não faltaram, nos últimos anos. Até um doutor da capital, arranjado pelo vereador Siqueira de Pedro das Mortes, receitou umas injeções. Nada deu jeito de parar as dores que o consumiam. Trabalhar, não podia mais. Haveria de viver à míngua, dependendo da caridade alheia. Fim de carreira e fim de vida, nos derradeiros espasmos dos anos 1950. Morreria como um tronco de joão-mole, oco, apodrecido e cheio de larvas. João-mole era madeira cinzenteira, que brasa não fazia. Desmanchava-se em cinzas. Uma desgraça para as donas de casa, que cozinhavam em fogão a lenha.
“João, ocê num tem vontade de ir à Beira d’Água, para se avistar com Dona Carminha de Tertulino Boca de Sapo? Espalham por aí que ela é de muita precisão nas rezas e garrafadas”. Mas, ele não botava fiança naquelas coisas. Apenas respeitava, pois respeitava todas as crenças. Tomara umas beberagens de folhas misturadas, sob recomendação de sua tia Domitila de Janjão Vem-Cá-Meu-Bem, que cultivava plantas medicinais para um-tudo e muito mais. Entretanto, cair nas mãos de uma feiticeira, pois era o que Carminha de Brotas, povoado pachorrento a légua e meia dali, vinha a ser. Deixasse-a com os seus encantados. Melhor seria apelar para as orações do padre Miguelinho, lá de Cruz Alta, um santo vivo. Pena que Cruz Alta era muito longe, dez ou doze dias de viagem em lombo de boa montaria. Não tinha como ir. Não aguentaria. Nem montar ele conseguiria.
“Por que ocê num pede a Siqueira de Pedro das Mortes pra te levar”? Siqueira não era mais vereador. Já faziam duas eleições que ele não conseguia se eleger. Até o jipe velho ele vendeu. Fez tanto pelo povo, mas, agora, era tudo no dinheiro. Contos e mais contos de réis despejados nas mãos da caboclada. Siqueira teve três mandatos, porém sucumbiu diante da dinheirama.
Se o padre Miguelinho, por milagre de Deus, aparecesse por ali, para pregar Santa Missão, ele teria esperança de cura. Homem milagroso. De boa conversa com os santos intercessores. Já tinha curado meio mundo de gente. Faziam para lá de vinte anos que, ali mesmo no Catolé de Baixo, o velho padre curou um magote de gente. Devia estar muito velho, se por acaso vivo ainda fosse. Quando esteve ali, já era homem de ter vivido muitas floradas de cajueiro. Talvez já tivesse passado desta para a outra vida. Que Deus o tivesse, se assim já fosse.
A tarde daquele domingo pôs-se a termo. O sol alaranjado deu de cair, lentamente, nos escuros da noite, que vinha sem pressa de chegar. Fim de tarde de verão, com dias mais longos. Rajas douradas cercavam o sol, que se foi avermelhando de forma estranha. O olho da estrela maior ficou da cor de sangue, de sangue bom, de boa tintura. Parecia que ia explodir em vermelhidão.
João de Zé Pinga-da-Boa pensou no sangue de Cristo, derramado na cruz “para purgar os pecados dos ímpios”, como disse o padre Miguelinho, na Santa Missão de mais de vinte anos atrás. Cristo castigado pelos poderosos, sofrido, estraçalhado pela maldade dos homens, que, muitos deles, continuavam tão maus como dantes. Impenitentes. Sem salvação? O frei Jonas Benelli, italiano, dizia, em sua língua meio enrolada, que “a misericórdia do Pai Eterno é grandiosa, mas Ele é justo; não tolera patifarias”. Ora, “quem, então, se salvará’? Pensou o velho João, arruinado da coluna.
A vermelhidão do sol aumentou. A noite veio para o encobrir. O velho roceiro, com a saúde danificada, que nem rezar direito sabia, balbuciou umas palavras, que só ele mesmo ouviu, prendendo a cabeça entre as mãos. Uma dor lancinante o envolveu por inteiro. Pensou que chegara a hora de entregar a alma ao Criador. “Meu Jesus”! Um sopro quente, muito quente, percorreu a coluna vertebral em pandarecos, fazendo-o suar. Ouviu estalos como os de gravetos quebrados. Muitos minutos se passaram. Ele não sabia precisar quantos. A coluna vertebral parecia ter endireitado. Aquele sopro escaldante trouxera-lhe a cura. Todo tempo havia de ser tempo de milagres.