O grande pensador Raymundo Faoro, autor da clássica obra “Os Donos do Poder”, após realizar um apanhado histórico das origens da corrupção no Brasil, lembra-nos do conselho que Bento Maria Targini, conhecido como Visconde de São Lourenço, Tesoureiro-Mor de D. João VI, deu a seu sobrinho quando este passou a ocupar um cargo no Reino: “Menino, trate de mamar enquanto a vaca dá leite”.
Desde nossa gênese disseminou-se essa ideia patrimonialista, sendo defendido como algo legítimo para a elite dominante a apropriação dos bens do estado. Ainda hoje não são poucos os escândalos envolvendo essa relação promíscua. Interesses pessoais sempre se sobrepõem ao interesse público, ensejando um longo inventário das misérias que constituem a formação da administração pública brasileira. Essa situação levou o Frei Vicente do Salvador, primeiro historiador brasileiro, a afirmar que “nenhum homem nessa terra é repúblico, nem zela ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular”.
Tem-se o fenômeno da corrupção, palavra que etimologicamente advém do termo latino “corruptionis”, formado a partir da conjunção dos termos “cum” e “rumpo”, significando “romper, quebrar o todo, quebrar completamente”, implicando na ruptura das estruturas, na decomposição de um corpo (degeneração biológica como o apodrecimento de algo). Essa ideia de degradação física transpõe-se para o mundo político e social, quando os filósofos, especialmente os gregos Aristóteles e Platão, passaram a teorizar e afirmar que as cidades (pólis) são corpos sociais, desenvolvendo-se os conceitos de virtude e justiça.
É nesse contexto que nasce a possibilidade de utilização da corrupção do tecido social, das estruturas do estado e das relações entre os indivíduos.
Recentemente mais um desses fatos inapropriados fora descoberto, investigado e revelado para o grande público, desta feita envolvendo um esquema de desvio de recursos de aposentados do INSS. Uma quadrilha aninhou-se na autarquia previdenciária que administra o Regime Geral de Previdência Social (RGPS), responsável por receber as contribuições previdenciárias e por pagar benefícios como aposentadorias, auxílios-doença e pensões.
Idosos, pensionistas, pessoas com problemas de saúde, vulneráveis em geral, são os clientes ou segurados do INSS e recebem referidos recursos (em valores módicos), como única fonte de sobrevivência.
A fraude revelada pela Controladoria-Geral da União – CGU e pela Polícia Federal responsável por deflagrar a “Operação Sem Desconto” consumou-se com a instituição de descontos automáticos nas aposentadorias e pensões em favor de entidades sindicais ou associações civis, sem que o segurado tenha feito qualquer tipo solicitação neste sentido.
Passou-se a remeter listas de associados fictícios, acompanhadas de documentos falsos, resultando em uma burla ao interesse de contratar abatimentos automáticos na folha de pagamento, sendo constatado na auditoria da CGU que 90,8% dos descontos não foram autorizados pelos aposentados e pensionistas. Referido golpe remonta pelo menos ao ano de 2019 e totaliza mais de 6,3 bilhões de reais de prejuízos, sendo desviados recursos de gente pobre e sofrida em favor de uma escumalha que sempre frequentou os grandes salões, tem livre acesso as antessalas do poder e está na gênese daqueles vícios identificados desde nossa formação.
No dia da operação policial foram apreendidos em poder dos investigados vários bens de luxo, carros importados, relógios caríssimos, obras de arte, joias, dinheiro em espécie, dentre outros objetos que materializam a prática da corrupção tão usual em nossa história. Espera-se que mais este escândalo não fique impune ou acabe em uma reprimenda absolutamente insuficiente.
Os exemplos recentes não são nada alvissareiros. A condenação do ex-presidente Fernando Collor (com mais de 30 anos de atraso), permitindo o cumprimento de prisão domiciliar em uma mansão à beira-mar, os fatos revelados no “Mensalão” com a divulgação da existência de uma mesada paga para parlamentares votarem as questões debatidas no Congresso Nacional, o “Petrolão” e todos os acordos de colaboração premiada com seus detalhes e valores vultosos devolvidos pelos investigados/réus à Petrobrás S/A, as “Emendas do Orçamento” – tema atual e que provoca reação da maioria dos parlamentares às decisões do Supremo Tribunal Federal, sendo que a luta dos deputados e senadores é para preservar o sigilo acerca dos gastos orçamentários (orçamento secreto), dentre outros fatos, apontam para o longo caminho a ser percorrido pela sociedade brasileira.
Esse descalabro contribuí para que, ano após ano, o Brasil ocupe posições vexatórias no IPC – Índice de Percepção da Corrução, ranking divulgado pela Transparência Internacional. Na semana passada foram revelados os dados de 2024 e de um total de 180 nações escrutinadas o país ficou no 107º lugar. Em 2023 estávamos em 104º lugar empatados com Gana, El Salvador e Nigéria.
Passamos a conviver com a corrupção, essa verdadeira falha moral na relação entre os homens e o estado, implicando em associação metafórica da corrupção com uma doença grave, comparando as práticas corruptas a uma ferida aberta, surto ou epidemia.
A corrupção é sem dúvida uma enorme chaga que precisa ser diariamente combatida. Se é verdade que não dá para construir um novo começo da nossa história, cabe mudar a atualidade para tentar escrever um outro fim.
Impossível permitir que gente como o “careca do INSS”, apontado pela Polícia Federal como um dos responsáveis por engendrar as fraudes em detrimento dos idosos carentes do país, viva impunemente pagando propina e burlando a lei, lucrando e obtendo ganhos em detrimento de pessoas humildes, desprovidas de informações, recursos e cidadania.
Urge combater essas práticas, mudar essa mentalidade, coibir esse malfadado jeitinho que esgarça nosso tecido social e torna pútrida as relações mantidas entre particulares com o estado.
Enquanto nossa convivência com a corrupção for de permissividade, despreocupação e ausência de uma repressão efetiva, ter-se-á a cada semana um novo escândalo, fazendo novas vítimas.
A sociedade deve permanecer de atalaia, exigindo que a cidadania viceje, atenta ao que fazem os políticos regularmente eleitos, fiscalizando e cobrando posturas efetivas de combate à corrupção, sob pena de nunca conseguir extirpar este câncer que corrói as estruturas do estado e se infiltra nos meandros do poder.
Somente com essa mudança de postura poderemos alcançar um país democrático, impessoal, racional e com pleno respeito à lei e aos princípios republicanos, em que todos gozem de igualdade jurídica e de acesso aos serviços e oportunidades públicos, repelindo a corrupção que deve ser tratada como algo que nos aflige e uma das principais causas de nosso atraso civilizatório.