ARACAJU/SE, 7 de setembro de 2024 , 20:26:33

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A MENTIRA COMO MÉTODO POLÍTICO: A INJUSTIFICÁVEL MANUTENÇÃO DO VETO À CRIMINALIZAÇÃO DE FAKE NEWS

 

O grande escritor norte-americano Mark Twain (1835-1910), um dos mais importantes do século XIX, autor de obras-primas como “As aventuras de Tom Sawyer” e “As aventuras de Huckleberry Finn” ao abordar a velocidade com que se propaga e o efeito devastador da mentira, em uma época pré-revolução das comunicações, vaticinou que “uma mentira pode dar a volta ao mundo, enquanto a verdade ainda calça os sapatos”.

É nesse contexto que se apresenta como absolutamente urgente e necessário combater a divulgação deliberada de fake news, especialmente para coibir os seus efeitos perniciosos durante o período eleitoral. As mentiras dolosamente derramadas nas campanhas eleitorais visam de forma antiética e imoral desnivelar o debate de idéias e buscar um atalho para a conquista dos espaços democráticos, sobrepondo a ficção ao real e a falsidade à verdade.

Existe um interesse enorme da massa pela mentira, pelos fuxicos, fofocas e teorias da conspiração, sendo que após criteriosa pesquisa conduzida em Harvard pelo Prof. Cass R. Sustein, resultando no livro “A verdade sobre os boatos” (Editora Campus), concluí festejado autor que uma fake news divulgada nas redes sociais é compartilhada seis vezes mais que uma notícia verdadeira.

Percebe-se um apelo e aceitação popular à divulgação da mentira, que se alastra rapidamente, especialmente em tempos de redes sociais, mensagens direcionadas por algoritmos e atuação lucrativa como das big techs, produzindo efeitos perniciosos, agravando-se a situação quando propalada fake news que objetiva fragilizar a própria democracia, comprometendo o processo eleitoral.

Foi exatamente pensando nesta hipótese, em uma época de ataques sistemáticos às urnas eletrônicas, ao Tribunal Superior Eleitoral, ao sistema de votação existente no país, com a divulgação de inverdades sobre a contagem de votos e possibilidade da prática de fraude eleitoral, havendo a inacreditável defesa do “voto impresso e auditável” e alegação de que o TSE mantém uma “sala secreta e escura” para totalização dos votos, além de “ocultar o resultado eleitoral final” ao não “divulgar o código fonte”, que o parlamento brasileiro aprovou a Lei nº 14.197, de 1º de setembro de 2021.

Referido diploma legal ao tempo em que revoga expressamente a antiga Lei nº 7.170, de 14 de dezembro de 1983 (Lei de Segurança Nacional), incluí o Título XII na Parte Especial do Código Penal, tipificando os crimes contra o Estado Democrático de Direito, sendo inseridos os arts. 359-I ao 359-U.

Deve-se à vigência de referida lei a possibilidade de prisão em flagrante dos vândalos golpistas que invadiram e destruíram os três poderes da república no último dia 08.01.2023, sendo que vários foram identificados, processados e alguns deles já se encontram julgados e condenados pela prática, dentre outros crimes, dos tipos penais de abolição violenta do Estado Democrático (art. 359-L) e Golpe de Estado (art. 359-M).

No rol dos novos ilícitos penais concebidos pelo legislador ordinário, avistava-se na redação originária de referida lei, o crime de “comunicação enganosa em massa” (art. 359-O, CP) assim redigido: “promover ou financiar, pessoalmente ou por interposta pessoa, mediante uso de expediente não fornecido pelo provedor de aplicação de mensagem privada, campanha ou iniciativa para disseminar fatos que sabe inverídicos, e que sejam capazes de comprometer a higidez do processo eleitoral”.

Para referido ilícito – divulgação de fake news em massa capaz de comprometer às eleições, conduta dolosa que atenta contra a segurança do processo eleitoral, fora fixada a pena de reclusão de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa.

O ex-presidente Bolsonaro, que durante a pandemia do Covid-19 fora duramente criticado pela divulgação de várias fake news sobre a ausência de eficácia ou supostos efeitos colaterais da vacina, isolamento sanitário, lockdown, etc., valeu-se de prerrogativa constitucional e vetou referido dispositivo, apresentando o pseudo-argumento de que o tipo penal “não deixa claro qual conduta seria objeto da criminalização, se a conduta daquele que gerou a notícia ou daquele que a compartilhou (mesmo sem intenção de massificá-la)” e, ainda, questiona se “haveria um ‘tribunal da verdade’ para definir o que viria a ser entendido por inverídico a ponto de constituir um crime punível”.

Evidente a tergiversação argumentativa ao apresentar as razões do veto, notadamente porque evidente que se trata de tipo penal doloso (disseminar fatos que sabe inverídicos), cuidando-se de conduta praticada mediante dolo direto, criminalizando a ação de quem promove ou financia a divulgação de notícia falsa, fazendo disparos em massa, com o propósito de comprometer a segurança e credibilidade do processo eleitoral.

Responsabilizar penalmente quem ataca as instituições democráticas e propala dúvidas sobre o sistema eleitoral e a própria justiça eleitoral não configura qualquer atentado à liberdade de expressão, tampouco consiste em tentativa de punir uma mentira inofensiva, muito menos a necessidade de instituição de um pretenso ‘tribunal da verdade’ para definir o que uma informação verdadeira ou falsa (fato ou fake). Nada disso.

Uma singela exegese do texto em sua redação originária deixa clara a mens legis (vontade da lei) e a mens legislatoris (vontade do legislador).

Pretendeu o parlamento brasileiro ao editar a Lei nº. 14.197/21 combater os ataques gratuitos ao sistema eleitoral, como os que aconteceram durante as eleições presidenciais de 2022, em que foram veiculados vídeos levantando suspeitas infundadas acerca do funcionamento e segurança das urnas eletrônicas, pondo em xeque a credibilidade da justiça eleitoral, afrontando a legitimidade do processo eleitoral. São essas condutas nefastas que o art. 359-O pretendia punir.

Cuida-se de tipo penal necessário, oportuno, proporcional e razoável, tutelando bem jurídico de elevada envergadura.

Entretanto, mesmo diante de toda essa relevância, existindo lacuna normativa sobre a matéria, para surpresa da população brasileira no último dia 28.05.24 ao ser submetido o veto presidencial à apreciação do Congresso Nacional, após os debates e colhidos os votos, chega-se a totalização de 317 deputados votando a favor da manutenção do veto e apenas 139 deputados votaram pela sua derrubada.

Considerando o quorum e a maioria absoluta alcançados, nos termos do art. 66, § 4º, da Constituição Federal fora mantido o veto, passando o parlamento brasileiro à inescondível mensagem de que a divulgação de fake news que atente contra o processo eleitoral é uma coisa de somenos importância, diz respeito ao direito de liberdade de expressão e não merece qualquer repressão penal. Preferiu-se manter vazio normativo, favorecendo quem age nas sombras e ao arrepio da lei, atacando relevante bem jurídico.

Eis decisão completamente equivocada. O tempo da verdade é mais lento que a curiosidade e interesse pela inverdade. Porém, a verdade é sólida e arrebatadora, podendo demorar, mas sempre vai romper os diques da mentira e emergir a superfície. Acredito que dentre em breve essa temática voltará ao parlamento e, quem sabe, com uma composição que não tenha a mentira como método político ou propósito eleitoral, possamos efetivamente dar o tratamento que o disseminador de fake news atentatória à democracia merece.

Até lá, deve-se reforçar os mecanismos de detecção e combate às fake news, e, como não é possível punir penalmente (nulla poena sine previa lege) quem dissemine ataques a higidez do processo eleitoral, deve-se continuar a vigília para aplicar as demais sanções de natureza cível, administrativa e eleitoral, previstas em lei. Dizer não ao uso e veiculação de fake news é uma meta de todo país civilizado, revelando uma sociedade amadurecida e que pretende a consolidação da democracia