ARACAJU/SE, 12 de março de 2025 , 1:37:32

A posse do presidente americano e o complexo de vira-latas do brasileiro

Evânio Moura

 

O grande jornalista e dramaturgo Nelson Rodrigues, ao analisar o imaginário do brasileiro que enxerga seu país como incapaz de competir em igualdade de condições com as demais nações e seu povo como carecedor de habilidades básicas, batizou essa inferioridade como “complexo de vira-latas”.

O escritor pernambucano vaticinou que “o brasileiro é um narciso às avessas, que cospe na própria imagem. Eis a verdade: não encontramos pretextos pessoais ou históricos para a autoestima”.

Parte do povo brasileiro passou a acreditar nesse complexo, disseminando a ideia de que somos inferiores social, cultural, científica e politicamente, quando comparados com as nações do hemisfério norte ou os países da Europa ocidental.

Não é verdade. É preciso repelir com todas as forças o complexo de vira-latas que finca raízes em setores da imprensa, em parte da classe política e em alguns segmentos sociais que ainda alimentam o sonho de que a América é a terra das oportunidades e outros que possuem como objetivo de consumo viajar para a Disney e fazer compras em Miami.

Impressiona o interesse sobre as eleições americanas, mesmo diante de um país que possuí um sistema eleitoral atrasado, com um método anacrônico de votação e apuração do resultado, além dos projetos do presidente dos EUA, que pelo visto é um sujeito quase plenipotenciário com poderes absolutos, ao menos no imaginário dos vira-latas.

Faço essa introdução a pretexto de comentar a recente posse de Donald Trump que contou com a presença de vários políticos da autodenominada direita brasileira (inclusive um deputado estadual sergipano que divulgou em suas redes sociais um diário de bordo, mostrando suas peripécias na terra do Tio Sam). Esses políticos que também se apresentam como patriotas (mesmo batendo continência para a bandeira de outro país) e conservadores (mesmo aplaudindo plataformas econômicas de um país que deseja anexar outros, impedir relações comerciais livremente e usar da força). Na verdade o vira-latismo destes políticos demonstra que eles não sabem o que é ser patriota, conservador e liberal. Eles adoram é bajular o presidente americano, mesmo sendo ignorados por ele. Maior exemplo de vira-latismo impossível.

A posse foi uma festa, teve de tudo. Desde gesto nazista do barão das big techs Ellon Musk, gafes diplomáticas, até a reiteração do surrado discurso de ódio contra estrangeiros, negros e latinos dos países vizinhos, além do ataque covarde as outras minorias.

O complexo de vira-latas destes políticos que viajaram com dinheiro público para assistir pela TV e no frio a posse de um presidente cujos objetivos consistem em perseguir imigrantes, construir um murro para se isolar dos vizinhos, não respeitar a soberania das demais nações, aumentar as barreiras alfandegárias, isolar-se do mundo, disseminar fake news, valendo-se do auxílio de seus neoaliados que representam as mais poderosas empresas de internet do mundo (não por outro motivo os donos da Amazon, Meta – WhatsApp e Instagram e X – antigo Twitter, estavam presentes na tribuna de honra), impressionaria o “anjo pornográfico”, acaso ele ainda estivesse vivo.

A sabujice dos deputados e senadores brasileiros que viajaram as expensas do contribuinte teve seu ápice com o envio de vídeos para seus seguidores, inclusive em um deles estavam alegres e dançando ao som de música sertaneja, comemorando a posse de alguém que no dia seguinte ao conceder entrevista coletiva e responder a uma repórter brasileira disse que a sua relação com os países latino-americanos nos próximos quatro anos será “excelente”, pois afinal “Eles precisam de nós, muito mais do que nós precisamos deles. Não precisamos deles. Eles precisam de nós. Todo mundo precisa de nós”,

A soberba americana ficou mais evidente quando imediatamente após a posse iniciaram as deportações em massa, tratando a todos os imigrantes ilegais como marginais perigosos, ferindo, inclusive, tratados internacionais de proteção dos Direitos Humanos.

Para demonstrar como a relação com o Brasil é “excelente”, já no dia 24.01.25 tivemos a deportação de 88 brasileiros algemados pelas mãos e pelos pés, durante um vôo de mais de 10 horas, sendo tratados como criminosos de elevada periculosidade.

Questionados os deputados e senadores que viajaram para a posse, rapidamente justificaram, como verdadeiros lacaios, que a deportação estava correta. Eis a incompreensível idolatria a quem te odeia.

Outro comportamento intrigante destes políticos que adoram a América consiste no fato de defenderem no Brasil o populismo penal com aumento de penas, crueldade na execução penal, minimizando a letalidade policial e quando comentam a situação nos EUA esses patriotas aplaudem o indulto que o Presidente concedeu aos invasores do Capitólio no dia 06.01.21, mesmo para aqueles que mataram policiais da Câmara dos Deputados e o perdão a um condenado à prisão perpétua por tráfico de drogas com o uso de criptomoedas.

Referidos “patriotas conservadores” foram à loucura com as juras de amor trocadas entre o presidente americano e os donos das big techs, em nome de uma suposta liberdade de expressão absoluta, onde será possível mentir, ofender, discriminar, perseguir e odiar sem o risco de moderação ou responsabilização, contribuindo para a implantação do Reich do Silício, na oportuna expressão criada pelo jornalista Corey Pein, usada para combater as idéias autoritárias que surgem no Vale do Silício.

Fico imaginando quão estranho e paradoxal é a existência de um patriota que adora a pátria alheia e se envergonha de seu país, que chora ao ver a bandeira americana e não exalta nossas riquezas, que é a favor do combate ao crime, embora aplauda o indulto para traficantes e homicidas. Eis uma nova modalidade de patriotismo que somente evidencia a atualidade da frase do escritor e crítico literário inglês Samuel Johnson ao afirmar que “o patriotismo é o último refúgio do canalha”.

De minha parte, continuo amando meu país, criticando nossos problemas econômicos, sociais e culturais, sem achar normal ser humilhado e ofendido por um presidente de outra nação.

Enquanto muitos brasileiros querem viajar para os EUA eu desejo conhecer mais meu próprio torrão, talvez fazer como o satírico Juca Chaves que na década de 70 do século passado, em plena ditadura militar, pedia para ser levado de volta ao Piauí. Ao invés de exaltar “New York, New York” de Frank Sinatra, a marchinha do menestrel, resgatada recentemente em filme de grande sucesso, dizia: “Hey Hey, dee-dee, Take me back to Piauí”.

Viva o Brasil e os brasileiros.