ARACAJU/SE, 2 de dezembro de 2024 , 5:42:42

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A suspensão cautelar das emendas parlamentares orçamentárias impositivas

Desde a aprovação das chamadas emendas impositivas, em 2015, o Poder Legislativo empoderou-se gradativamente na execução do orçamento da União, ocasionando tensão crescente com o Poder Executivo e crise no “presidencialismo de coalizão”.

Em 2019, novas emendas constitucionais encorparam ainda mais o Poder Legislativo nessa matéria e, sob a gestão de Artur Lira na Presidência da Câmara dos Deputados a partir de fevereiro de 2021, o “centrão” passou a exercer um poder político ainda mais pujante sob a batuta do que se convencionou chamar de “orçamento secreto”.

Nesse contexto, o STF foi acionado em ação direta de inconstitucionalidade, na qual o autor (PSOL) requer a declaração de inconstitucionalidade de normas introduzidas na Constituição por via das emendas constitucionais nº 86/2015, nº 100/2019, nº 105/2019 e 126/2022, normas estas que tratam dessa temática (ADI nº 7697).

O controle de constitucionalidade de emendas constitucionais é viável: sob o aspecto formal, cabe a verificação do preenchimento dos requisitos constitucionais relativos à iniciativa, procedimento de discussão e votação, quórum para aprovação, promulgação e vedação à rediscussão, na mesma sessão legislativa, de matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havia por prejudicada; sob o aspecto material, o controle incide mais restritivamente, não bastando a simples incompatibilidade com qualquer norma da Constituição (afinal, o propósito de emenda constitucional é exatamente alterar, acrescentar ou revogar normas constitucionais), sendo indispensável caracterizar que a emenda tem tendência a abolir qualquer das chamadas “cláusulas pétreas” (forma federativa de Estado, voto direto, secreto, universal e periódico, separação de poderes e direitos e garantias fundamentais).

Nesse ponto, é fundamental perceber que o grau de proteção constitucional das cláusulas pétreas é hiperlativo: é vedada até mesmo a deliberação sobre proposta de emenda tendente a abolir, ou seja, basta a tendência à abolição da cláusula pétrea para a incidência da proibição de até mesmo colocar em votação uma proposta de emenda.

Ao apreciar o pedido de concessão de medida cautelar, o Relator, Ministro Flávio Dino, considerou que o conjunto progressivo das alterações nas sistemática constitucional proporcionado pelas emendas constitucionais nº 86/2015, nº 100/2019, nº 105/2019 e 126/2022, ao empoderar significativamente o Poder Legislativo na execução orçamentária – papel precípuo do Poder Executivo tal como definido no arcabouço originário da organização dos poderes  – revelou tendência à abolição da separação dos poderes. Por isso, concedeu a medida cautelar, determinando, com efeitos prospectivos: o impedimento de qualquer interpretação que confira caráter absoluto à impositividade de emendas parlamentares; o dever do Poder Executivo de aferir, de modo motivado e transparente, a aptidão das emendas parlamentares à execução, conforme requisitos técnicos; a execução das emendas impositivas, em quaisquer de suas modalidades, está condicionada ao cumprimento de regras técnicas extraídas da Constituição e de normas infraconstitucionais, a exemplo da prévia existência de plano de trabalho com verificação de compatibilidade do objeto com a finalidade e a proporcionalidade do valor indicado e do cronograma de execução, da compatibilidade com a lei de diretrizes orçamentárias e com o plano plurianual, a efetiva entrega de bens e serviços, com eficiência, o cumprimento de regras de transparência e rastreabilidade que permitam o controle social do gasto público.

Determinou ainda a suspensão da execução das emendas impositivas até que os Poderes Legislativo e Executivo, em diálogo institucional, regulem os novos procedimentos de acordo com a decisão cautelar.

Submetida ao exame dos demais Ministros no Plenário Virtual, a medida cautelar foi ratificada por unanimidade, sendo que o Ministro Nunes Marques acompanhou o Relator Flávio Dino com pequenas ressalvas.

É evidente que essa decisão aumenta as tensões entre o STF e o Poder Legislativo. No entanto, parece acertada a decisão cautelar, fundamentada na plausibilidade jurídica da tese da inconstitucionalidade dessas emendas constitucionais, no ponto em que, gradativamente, tornaram o Poder Legislativo o executor atomizado de parcelas relevantes do orçamento – quando essa matéria é originalmente afeita ao Poder Executivo que, com autorização em lei, deve planejar a execução orçamentária considerado o todo do planejamento das políticas públicas a serem efetivadas – e, com isso, revelaram forte tendência à abolição da separação e independência entre os poderes, pois traduzem avanço indevido do Poder Legislativo sobre prerrogativas típicas do Poder Executivo.

Do ponto de vista político, ressalte-se que as emendas parlamentares orçamentárias impositivas representaram, também, uma porta aberta para mais e mais mecanismos de práticas de corrupção que vêm se repetindo ao longo da história.

Já tivemos a oportunidade de apontar que, por meio das emendas individuais parlamentares – impositivas, pois de execução obrigatória – seria possível reproduzir, sem mecanismos mais efetivos de controle, o “esquema das empreiteiras” muito bem revelado na CPMI do Orçamento de 1993.

Os desmandos e a total falta de transparência e de controle do “orçamento secreto”  evidencia que se chegou a patamares intoleráveis, que a decisão cautelar do STF, devidamente acionado e exercendo, até o momento, competências que lhe são constitucionalmente atribuídas (controle de constitucionalidade de emendas constitucionais) e de acordo com os meios processuais legalmente previstos, pode contribuir para a resolução definitiva do grave quadro que tanto tem afetado a governabilidade democrática.