ARACAJU/SE, 26 de novembro de 2025 , 20:42:11

A tortura de Vladimir Herzog: 50 anos de uma infâmia que não pode ser esquecida

Evânio Moura

 

O filósofo alemão Theodor Adorno, um dos fundadores da Escola de Frankfurt e da Teoria Crítica, em sua obra Educação após Auschwitz sustenta que a sociedade deve questionar as estruturas hierárquicas inflexíveis procurando fortalecer um processo educacional que exponha os horrores históricos para não esquecê-los, buscando criar uma consciência que combata o discurso de ódio, o extremismo e o negacionismo científico, desenvolvendo uma ética individual que questione como Auschwitz pode ser evitada e nunca mais permitida, aceita ou normalizada.

Lembro desse ensinamento para homenagear Vladimir Herzog, preso no auge da ditadura militar e torturado até a morte. O país vivia anos de chumbo, a censura era regra, o autoritarismo reinava, a tortura foi abertamente utilizada como principal método de obtenção de confissões e delações nos porões dos quartéis transformados em masmorras estatais dirigidas por sádicos a serviço de um sistema ilegítimo, espúrio e podre.

No dia 24 de outubro de 1975, o jornalista judeu, filho de pais iugoslavos que fugiram dos horrores da segunda guerra, então diretor da TV Cultura, foi intimado por agentes da ditadura militar para depor sobre sua relação com o Partido Comunista Brasileiro. Vlado, como era carinhosamente conhecido por seus colegas, não tendo qualquer relação com o PCB se apresentou sem advogado ou acompanhante no DOI-Codi, local destinado a prática de diversas barbáries narradas com impressionante riqueza de detalhes no livro de Marcelo Godoy “A Casa da Vovó: Uma biografia do DOI-Codi (1969-1991), o centro de sequestro, tortura e morte da ditadura militar”.

Na tarde do dia 25 de outubro de 1975, Herzog estava morto. O presidente Ernesto Geisel e os asseclas do regime tentaram acobertar o crime com uma mentira deslavada: Vlado teria se suicidado na cela em que estava preso para averiguações. Seus familiares sempre negaram a tese de suicídio e a foto daquele homem indefeso, com um cinto enrolado no pescoço, joelhos dobrados e os pés tocando o chão,  transformou-se em símbolo da violência estatal.

Coube a Dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo de São Paulo e fervoroso crítico da ditadura militar, presidir um culto ecumênico no sétimo dia da morte do jornalista, contando com a presença do rabino Henry Sobel e do reverendo Jaime Wright.

Esse ato realizado na Catedral da Sé reuniu mais de 8 mil pessoas que estavam terminantemente proibidas de fazerem qualquer protesto explícito como portar cartazes, faixas ou mesmo gritar “abaixo a ditadura”. Após o término da cerimônia religiosa que contou com a presença de familiares e amigos de Herzog, intelectuais, artistas, políticos, estudantes e gente do povo que foi prestar sua solidariedade, havia um clima de tensão, pois a praça encontrava-se cercada de militares prontos para prenderem, baterem e exorbitarem, acaso existisse qualquer movimento de crítica à ditadura.

Nesse momento Dom Hélder Câmara, outro gigante defensor dos direitos humanos e da justiça social juntamente com o presidente do sindicato dos jornalistas de São Paulo tiveram a missão de orientar a multidão a dispersar e ir para suas casas, neste que se tornou um marco contra o regime autoritário implantado no país.

O sentimento era de revolta, tristeza e angústia. Todos em silêncio e com lágrimas nos olhos saiam da Sé. Indagado por uma repórter se haveria protesto, D. Hélder respondeu: “Você não está ouvindo? Estamos gritando em silêncio. Não vão calar esse grito ensurdecedor”.

Ali a ditadura começava a ruir. A família Herzog ingressou com uma ação contra a União e, em um gesto de coragem, o juiz federal Márcio José de Moraes responsabilizou o estado brasileiro pela prisão ilegal e pela morte do jornalista. A sentença afirmava: “Constata-se a prática de crime de abuso de autoridade, bem como há revelações veementes de que teriam sido praticadas torturas não só em Vladimir Herzog, como em outros presos políticos nas dependências do DOI-Codi”. A decisão foi a primeira condenando formalmente a ditadura e, ainda, determinou que a Justiça Militar apurasse todas as sevícias praticadas nas unidades militares mencionadas nos autos do processo. A União recorreu, mas a sentença fora mantida, transitando em julgado.

A família Herzog, representada principalmente pela viúva Clarisse, nunca parou de lutar. Ingressou com outra demanda para obter um atestado de óbito com o correto motivo da causa mortis, excluindo a alegação de suicídio.

Depois disso também foram à Corte Interamericana de Direitos Humanos e denunciaram o fato de que nunca houve punição criminal para os torturadores. O estado brasileiro foi condenado pela CIDH por “não investigar, julgar e punir os responsáveis pela tortura e assassinato, e por violar o direito da família de conhecer a verdade”. A sentença de 2018 determina que o país reabra as investigações para identificar e punir os culpados, considerando a morte sob tortura motivada por divergências políticas um crime contra a humanidade e imprescritível.

A decisão da Corte Interamericana dos Direitos Humanos obriga o Brasil a investigar e processar os responsáveis pelo crime. Após essa determinação o Ministério Público Federal passou a propor ações criminais em casos de homicídios ocorridos durante a ditadura militar. A sentença ainda determina que o país peça desculpas formais a família e outorgue a condição de anistiado à vítima.

Em março de 2025 a anistia post mortem foi definitivamente publicada no Diário Oficial da União, concedendo-se à viúva uma pensão mensal vitalícia.

Passados 50 anos de impunidade por essa barbaridade, fica a dura lição de que ditadura nunca mais, valendo o desagravo prestado em forma de homenagem por João Bosco e Aldir Blanc na belíssima música “O bêbado e o equilibrista” ao vaticinarem: “Caía a tarde feito um viaduto; E um bêbado trajando luto; Me lembrou Carlitos; A Lua, tal qual a dona do bordel; Pedia a cada estrela fria; Um brilho de aluguel. (…) Meu Brasil que sonha; Com a volta do irmão do Henfil; Com tanta gente que partiu; Num rabo de foguete; Chora a nossa Pátria, mãe gentil; Choram Marias e Clarices; No solo do Brasil”

Que Clarice Herzog receba como alento, passado meio século de sua luta, que ela não foi em vão, pois a sociedade brasileira hoje processa e julga tentativa de golpe de estado, não tolera mais a impunidade de oficiais militares ou autoridades que extrapolam os limites constitucionais e é, majoritariamente, contra a anistia para quem deseja atacar a democracia.

Como bem ensinou o filósofo alemão Adorno, que a ferida fique exposta para nunca mais esquecer e nunca mais repetir.