Há hoje uma obsessão pela felicidade que pode estar impedindo as pessoas de viver de verdade. Esta é uma das principais provocações do livro “O Sentido da Vida”, obra póstuma de Contardo Calligaris, de 2023, que questiona a ideia de que a felicidade seja o objetivo principal da existência humana. O livro é um ensaio entre a psicanálise e a filosofia, que consolida o material de suas palestras e colunas na Folha de São Paulo.
O psicanalista italiano radicado no Brasil usa uma situação corriqueira para ilustrar seu ponto. Quando alguém indaga “Tudo bem?”, espera-se uma resposta positiva. Prefere-se a confirmação superficial de um “tudo!” a uma reflexão autêntica ou um diálogo sincero. A resposta negativa surpreende e constrange. Gera mal-estar.
Para Calligaris, essa busca e espera incessante pela felicidade pode ser uma distração que impede a vivência plena do presente.
Em lugar de focar na felicidade, Calligaris propõe o esforço de viver uma “vida interessante”. Esta ideia esteve em suas reflexões em diversas palestras e textos. Uma vida interessante é aquela em que a pessoa se autoriza a viver com intensidade, desfrutando com atenção das aventuras que a vida proporciona, mesmo que não sejam agradáveis.
Ele faz um contraste com a visão aristotélica da felicidade. Para os gregos antigos, a felicidade era a “eudaimonia”, que significava “bom espírito” ou “bom gênio” e exigia uma situação objetiva de harmonia com o cosmo. Aristóteles acreditava que mesmo um morto poderia ser considerado feliz se sua vida tivesse se alinhado com essa ordem universal. Houvesse dor ou sofrimento, mas isso fizesse sentido, haveria a felicidade, vida plena, à moda grega. Essa concepção difere radicalmente da visão moderna e subjetiva da felicidade como um sentimento obrigatório.
Ainda nesses ensaios, ele traz outra ideia significativa. Seu pai falava sobre os “buracos nas estantes” de uma biblioteca: espaços vazios que representam as incertezas, as perguntas sem resposta e a falta de segurança na vida. Em vez de tentar preencher esses buracos com doutrinas ou ideologias que oferecem tranquilidade, o pai do autor acreditava que é melhor conviver com eles. A insegurança, a dúvida, o receio como espaço para a vida acontecer.
Esta postura se contrapõe a filosofias que veem a angústia da incerteza como uma condição penosa. Calligaris argumenta que a tentativa de “tapar os buracos” com certezas pode levar a ideologias que promovem a “boçalidade”. O autor define “boçal” como aquele que reprime no outro a liberdade que o apavora, impondo seu próprio modo de gozar a vida.
Calligaris conta que seu pai justificou seu engajamento antifascista em armas não por princípios políticos ou econômicos, mas porque os fascistas eram “muito vulgares”. Esta história familiar se transforma em reflexão filosófica sobre como o juízo estético pode fundar uma linha de conduta moral tão ou mais radical do que grandes princípios ou utopias sociais.
A “vulgaridade fascista” se manifestava, entre outras coisas, no pedido constante de cumplicidade e na estupidez de queimar livros e exterminar pessoas. Para o pai de Calligaris, não achar graça nas “piadas dos idiotas” constituía um mecanismo fundamental de oposição a grupos totalitários. O gosto, nesta perspectiva, torna-se uma ferramenta de resistência política e moral.
O livro também revisita o conceito de hedonismo. Calligaris argumenta que o verdadeiro hedonismo não é prazer fácil, gratificação imediata ou distração, mas exige um “esforço contínuo de atenção ao mundo e um aprendizado sem fim”. A contemporaneidade, com seu uso excessivo de celulares, é descrita como “muito pouco hedonista” porque está distraída demais para fruir a vida com intensidade e atenção.
Esta crítica se estende ao lidar com a morte. O autor traz a ideia de “uma morte bonita” não como glória militar, mas como uma forma elegante de terminar a vida, ligada à coragem de viver com intensidade até o fim. As mortes de Sêneca e Sócrates são citadas como modelos de uma morte controlada e dominada, em que a convicção de que a coerência com os próprios valores é mais importante do que o prolongamento da própria vida, o que leva à aceitação do destino.
Para quem vive no foro, essas reflexões podem produzir alguns alumbramentos. As carreiras jurídicas lidam com a incerteza (embora busquem a utopia da segurança): casos complexos, interpretações jurídicas divergentes e a impossibilidade de prever resultados definitivos. Em vez de buscar a ilusão de controle total sobre os processos e decisões, o jurista pode encontrar na proposta de Calligaris uma forma mais “interessante” de exercer sua profissão.
De fato. A ideia dos “buracos nas estantes” cabe na prática jurídica. O direito está repleto de lacunas, interpretações abertas e situações sem precedentes claros. O profissional que aceita essas incertezas como parte natural da profissão, em vez de tentar preencher todos os espaços vazios com certezas artificiais, pode exercer uma prática humana, menos dogmática.
Os “buracos nas estantes” aparecem em cada caso novo que não se encaixa perfeitamente nos modelos conhecidos, em cada mudança de jurisprudência que desafia convicções estabelecidas, em cada cliente ou jurisdicionado cuja situação escapa às categorias tradicionais. O profissional que convive com essas incertezas sem tentar resolvê-las por meio de encaixe forçado em fórmulas ou dogmas desenvolve criatividade e humanidade. Nem todas as perguntas têm respostas definitivas. Isso liberta o profissional para explorar soluções inovadoras e para reconhecer os limites do próprio conhecimento. Aceitar dói menos.
O juízo estético também tem relevância para quem trabalha com justiça. A “vulgaridade” que o pai de Calligaris identificava no fascismo pode ser reconhecida, com outras vestes, em práticas jurídicas que buscam apenas a vitória a qualquer custo, sem consideração pela elegância do argumento ou pela dignidade do processo. O profissional que cultiva o senso estético pode encontrar nele uma bússola moral que orienta suas escolhas éticas. Se é feio, não é adequado.
Para o advogado ou juiz, uma vida interessante pode significar algo além da busca estrita, obsessiva, por sucesso financeiro ou reconhecimento profissional, fama. Pode representar a escolha de casos que desafiam intelectualmente, a defesa de causas que importam verdadeiramente, ou a construção de uma carreira pública que equilibre competência técnica com propósito social. O profissional que se autoriza a viver com intensidade encontra prazer no estudo aprofundado, na elaboração de textos elegantes e na busca por soluções criativas para problemas jurídicos complexos. Esta abordagem transforma a rotina processual em uma aventura intelectual.
O conceito revisitado de hedonismo também aparece na vida jurídica. O verdadeiro prazer profissional não vem da gratificação imediata de vitórias fáceis ou da acumulação desenfreada de clientes, mas do “esforço contínuo de atenção” às nuances de cada caso, do aprendizado constante das mudanças legislativas e jurisprudenciais, da fruição intelectual que emerge da análise profunda de questões complexas. O advogado que pratica esse hedonismo atento encontra satisfação genuína na qualidade de seus argumentos, na precisão de suas análises e na elegância de suas soluções jurídicas. Diferentemente da distração superficial que marca a cultura contemporânea, essa forma de prazer exige presença e engajamento com a matéria jurídica.
A proposta é radical em sua simplicidade: autorizar-se a viver com intensidade, prestar atenção ao mundo e encontrar beleza mesmo nas experiências que não são agradáveis. Uma vida interessante pode ser mais valiosa do que uma vida feliz? Parece que sim. E, sem contradição, pode ser, justamente por isso, fonte de felicidade.