ARACAJU/SE, 28 de agosto de 2025 , 8:59:20

Adultização infantil e o vídeo de Felca: a urgente regulação das redes

 

O vídeo do criador de conteúdo Felca, publicado em agosto de 2025, reacendeu no Brasil um debate tão necessário quanto adiado: o da regulação das plataformas digitais, especialmente no que diz respeito à proteção de crianças e adolescentes. Ao denunciar, com contundência e sensibilidade, a adultização precoce de meninas — impulsionada por conteúdos monetizados nas redes — Felca não apenas expôs a face mais perversa do entretenimento digital, mas também mobilizou a sociedade e os poderes da República. O impacto foi imediato: dezenas de projetos de lei foram protocolados no Congresso, na esteira, também, da nova jurisprudência firmada pelo Supremo Tribunal Federal em junho deste ano sobre a responsabilidade das plataformas.

O vídeo de Felca revelou mais do que a exploração da infância: escancarou um modelo de negócios baseado na captura da atenção, na manipulação algorítmica e na monetização de vulnerabilidades. Crianças são tratadas como produtos; suas imagens, sua linguagem corporal, sua inocência performada em contextos ambíguos, tudo se converte em cliques, engajamento e renda — para os responsáveis, para influenciadores, para as plataformas.

Essa lógica revela os contornos de uma nova ordem econômica e simbólica: a do tecnofeudalismo, como analisa o economista Yanis Varoufakis. As Big Techs não operam mais sob os moldes do capitalismo tradicional, mas como senhores de plataformas-feudos, extraindo valor de bilhões de pessoas que, gratuitamente, alimentam seus algoritmos com dados e comportamentos. A infância se torna, assim, mais um elo frágil dentro de um ciclo de exploração e invisibilização.

A resposta institucional veio em três frentes. No Legislativo, o PL nº 2.628/2022 (“ECA Digital”), já aprovado pela Câmara, avança na criação de regras para proteção de menores, exigindo transparência, controle parental e responsabilização das plataformas. No Judiciário, o STF declarou parcialmente inconstitucional o art. 19 do Marco Civil da Internet, abrindo caminho para responsabilizar civilmente as plataformas mesmo sem ordem judicial prévia. E na sociedade civil, milhares de pessoas exigem, com razão, que o país assuma o controle soberano do seu espaço digital.

 

O cerne do problema não está apenas na exploração infantil, mas em um modelo algorítmico que filtra a informação, molda condutas e gera fragmentação social, tudo em nome do lucro. Como advertiu Martin Hilbert (assessor de tecnologia da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos e apontado como “guru” do “Big Data”), os algoritmos tornam previsível a conduta humana; como alertou Yuval Harari, podem aprofundar desigualdades irreversíveis. A ausência de regulação permite que essa lógica atue sem freios, reproduzindo bolhas, discursos de ódio e consumo direcionado — inclusive de conteúdos que deveriam ser interditados por qualquer sociedade comprometida com a dignidade humana.

A resistência das Big Techs é sintomática. Alegam censura, liberdade de expressão, risco à inovação. Mas o que está em jogo não é a censura, e sim a responsabilidade. Não se pode tolerar que empresas multinacionais se beneficiem de lacunas legais, lucrando com violações de direitos fundamentais enquanto se eximem de deveres mínimos de ética e legalidade.

Mais grave ainda é a articulação dessas corporações com setores políticos e econômicos internacionais que, sob o discurso da liberdade digital, buscam interferir na soberania nacional e desacreditar instituições democráticas brasileiras. O caso Felca também revela isso: enquanto o Brasil tenta proteger suas crianças, há resistência internacional, desinformação orquestrada e pressões veladas contra qualquer tentativa de regulação com base nos marcos legais internos.

Regulamentar as redes é um imperativo civilizatório. A internet pode e deve ser espaço de liberdade, criação, diversidade e democracia. Mas para isso, não pode ser terra de ninguém – nem das plataformas, nem do mercado. A infância brasileira não é mercadoria digital. A democracia não é algoritmo. O direito à informação não pode ser refém de interesses privados.

O vídeo de Felca foi o grito que rompeu a bolha. Agora cabe às instituições manterem a escuta ativa, legislar com coragem, julgar com firmeza e agir com compromisso público. Porque onde o algoritmo explora, o direito deve proteger. E onde o lucro cega, a justiça deve enxergar.