O anão não era aluno, nem professor, nem inspetor de sala. Para deixar o fato bem esclarecido, trabalhava na empresa que executava alguma obra no Ginásio. De pernas arqueadas, o sorriso indecifrável que exibia, a cabeça se movimentando enquanto caminhava, como se vangloriasse de sua pequenez e da curva das pernas. Devia ser ajudante de alguma coisa. Ou de pedreiro, ou de profissional ligado ao telhado, o cheiro de alguma droga que invadia a sala de aula, e segundo se ouvia, servia para proteger a madeira de bicho. O certo é que o anão existia, era de carne e osso, e, independentemente do tempo passado – cinquenta e nove anos -, agora, aqui, eu o ressuscito, ou o mantenho vivo, na categoria do estranho as lides ginasianas que mais me impressionou nos quatro anos em que passei pelos bancos do Ginásio Estadual de Itabaiana.
E observem que o Ginásio tinha muita gente estapafúrdia, de aluno a professor, de bedel a servidor, gente que, medida pela trena da psiquiatria, talvez não alcançasse média suficiente para aprovação, ainda que arrastada. Poupo os nomes. Os mortos que durmam o sono tranquilo dos anjos, agora que se preparam, em data ainda não conhecida, para o dia da ressurreição, quando todos receberão o julgamento devido do próprio Deus, segundo as aulas de catecismo.
O anão – cujo nome nunca soube – se afasta da solidão de sua insignificância, para, aqui, alçar um patamar maior, carregando nas costas a proeza de se destacar em meio a tantas almas que frequentaram o Ginásio naqueles velhos idos, o que não era tarefa singela, quando até sua roupa espalhava parca condição financeira, a camisa aberta, a bermuda suplicando para ser lavada, usada todo santo dia, como se fosse a única que seu guarda-roupa ostentava.
Para clareza total dos fatos, dele já me aproveitei em conto no livro Mulungu desfolhado, 1999, dando-lhe o principal papel, de Senhor Preposto, nome, aliás, do conto, preposto de uma fábrica que consumia o trabalhador, transformando quem reclamava em inválido, porque o empregado sempre tinha um débito que a empresa não perdoava. E o Senhor Preposto terminou sendo vítima do sistema do qual integrava. Agora, mesmo à revelia do Diabo, tiro o anão do inferno, para não sofrer mais queimadura alguma, [já quitou seus pecados] lhe reservando um lugar no purgatório, onde, segundo consta, não há forno algum e a temperatura é suave.
Rezo para o anão aprovar a mudança.