ARACAJU/SE, 29 de agosto de 2024 , 2:03:27

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As disputas e os títulos

De um modo geral, as pessoas percebem pouco que as normas eleitorais determinam os eleitos. Ter a maioria dos votos não garante êxito eleitoral. Há mal-estar quando um candidato a vereador ou a deputado mais bem votado não consegue a cadeira que disputou, mas um menos sufragado é considerado eleito. Isso decorre das complicadas regras do sistema proporcional, que visam, acertadamente, garantir pluralidade nos parlamentos e aproveitar, ao máximo, os votos dados a correntes de pensamento minoritárias.

Isso não é novidade. No Império, havia dificuldades análogas. Na verdade, era muito pior. Naquele tempo, havia fraude descarada e violências impunes. Ademais, na disciplina legal que produzia os eleitos, o percurso para eleger um deputado era bem mais intrincado do que é hoje.

Até 1881, vigorava a Lei dos Terços. Os deputados eram escolhidos indiretamente. O eleitorado geral selecionava os eleitores secundários, que, por sua vez, elegiam os deputados. Existiam exigências de renda para poder votar em cada uma dessas etapas. Algumas profissões estavam excluídas da possibilidade de votar e de serem votadas. A eleição era em turnos sucessivos, dentro de um específico distrito. Se o distrito elegia três deputados, então o eleitor só poderia votar em dois nomes. Essa técnica foi buscada como uma forma de permitir a representação de minorias, mas não deu muito certo.

É aí que entra o Conselheiro Saraiva. José Antônio Saraiva (1823-1895) era um eminente membro baiano do partido liberal, que, em 1880, foi convidado por D. Pedro II para suceder o Visconde de Sinimbu, na presidência do Conselho de Estado (uma espécie de primeiro-ministro). No convite, constava a autorização para promover a reforma eleitoral, o que, nos termos de há muito propugnados na corrente partidária de Saraiva, equivalia a viabilizar o voto direto.

Saraiva encarregou o jovem deputado liberal, também baiano, Ruy Barbosa, de redigir a nova legislação. Ruy defendeu suas posições aguerridamente nos debates parlamentares. O texto final aprovado foi sancionado em 9 de janeiro de 1881. Era o Decreto 3.029, a Lei Saraiva ou Lei do Censo.

Essa lei, ao abolir as eleições indiretas, apesar de simplificadora, tinha traços elitizantes. Por exemplo: ela proibia o voto dos analfabetos. Os homens alfabetizados (mulheres só conseguirão votar após a Revolução de 1930) eram apenas 20% da população. Logo, de mais de um milhão de eleitores em 1872, ou 13% da população não escravizada, o primeiro pleito realizado após o advento dessa legislação só pôde contar com 100 mil votantes, ou 0,8% da população livre. Para que se tenha uma ideia do impacto dessa restrição, apenas em 1945 é que o número de votantes para presidente atingirá 13,4% e superará percentualmente os que podiam votar em 1872.

Além da exigência de alfabetização, outros requisitos contribuíam para essa escassez de eleitores. O voto seguia censitário (200 mil réis de renda, comprovada e não meramente declarada). Só se permitia o voto masculino. A idade para voto era 25 anos (exceto para casados, militares, bacharéis ou clérigos). Demandava-se residência de ao menos um ano no distrito. Em um país que admitia a escravidão, o efeito prático democratizante do voto direto, nessas condições, era substancialmente diminuído.

Para ser votado também havia rigorosas exigências, conforme o cargo a disputar. Exemplificativamente: para ser senador, impunha-se a idade de 40 anos e a renda anual de 1 conto e 400 mil réis. Para deputado à Assembleia Geral, não existia especial requisito etário, mas demandava-se a renda de 800 mil réis. Havia uma série de incompatibilidades (hoje, chamadas de inelegibilidades), como a de funcionários nomeados pela Corte não poderem concorrer.

O extenso diploma legal de 242 artigos tinha virtudes, além do voto direto (reduzido, embora). Garantia que ele seria secreto. Permitia a presença de fiscais eleitorais. Previa um censo para mapear o eleitorado. E, muito interessante, passou a dar aos juízes uma função administrativa nas eleições. Aos juízes municipais e de direito competia organizar o alistamento eleitoral. Esse alistamento prévio era concluído com a apresentação de um documento: o título de eleitor. Nisso, pode-se enxergar uma embrionária construção da função que, em 1932, seria atribuída à Justiça Eleitoral.

Apesar das mudanças, as minorias seguiram sem participação relevante. Enquanto o Imperador nomeasse o Presidente do Conselho, este indicasse os presidentes de província e os servidores graduados nelas, as eleições fabricariam Assembleias à feição dos gabinetes nomeantes. Era o “parlamentarismo às avessas”. Não era o parlamento quem escolhia o governo, mas o governo quem formava o parlamento.

Veio, então, o Decreto 3340, de 14 de outubro de 1887, que estabeleceu que os eleitores voltariam a votar em dois de três candidatos por distrito, nas câmaras municipais e assembleias provinciais, a fim de permitir a eleição de minorias locais. Dava-se um passo atrás, complicador do sistema.

Mas não houve muito a testar. Em 1889, chegou a República e, com ela, o título de súdito do Império passou a ser o de cidadão da República e uma nova história eleitoral começava. Tão complicada quanto a anterior, frise-se.