ARACAJU/SE, 24 de abril de 2024 , 22:55:22

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As metamorfoses

Do mesmo modo que evoluem as maneiras de determinado artefato ser formado e utilizado (pense em como um texto era escrito na Mesopotâmia e como é hoje), da mesma maneira que uma instituição muda com o passar do tempo (imagine como era a família no período colonial e como é agora), os objetos do direito permanecem iguais nos nomes, mas outros no jeito de ser. A ideia de constituição é um exemplo disso: ela não é exatamente a mesma de outrora. Nem na proposta, nem no conteúdo, nem na forma.

A natureza das constituições muda. No Brasil, excluída a matéria relativa à organização do Estado, a Constituição era vista, em extensa parte, como uma carta de intenções, uma forma de elencar propósitos, um programa a ser implementado pelas autoridades constituídas. Após 1988, o entendimento que prevalece é: se está nela, vale, é coativo, é cogente, não é mera sugestão. É interessante notar que a efetivação das normas constitucionais caminhou a par e passo com o reforço do poder do Supremo Tribunal Federal. Quanto mais imperativas elas são, mais ele absorve força institucional, como seu órgão primaz de proteção.

Assim, a Constituição deixou de ser apenas um instrumento de arranjo dos poderes e de distribuição de tarefas federativas, para dotar-se de energia bastante para gerenciar os comportamentos dos indivíduos. Ela se espalhou por todos os ramos jurídicos, invadiu todos os recantos da regulação social, para proibir, permitir ou determinar qualquer ação ou omissão humana. Atualmente, a implementação de qualquer regra escondida no mais raso dos atos normativos ou na mais pedestre das condutas terá de ser filtrada por seus comandos. 

Ainda que se trate da mesma peça histórica, ainda que suas palavras mudem pouco, com o passar dos anos, ela sofre mutações. Basta ver que a Constituição vigente reconheceu as uniões afetivas de pessoas do mesmo gênero como entidade familiar, mediante um processo de mudança sem intervenção textual, apenas por meio de interpretação.

Além dessas metamorfoses, por assim dizer, de natureza e conteúdo, a Constituição também tem variado de estrutura, no Brasil. As 109 emendas constitucionais comuns e as 6 de revisão, implantadas nestes 32 anos de vigência, deixaram fora do corpo constitucional algumas cláusulas. Isso quer dizer que, em algumas situações, para conhecê-la, não basta apenas ler o que nela se contém, mas é preciso procurar se remanesceu algum preceito no texto das suas emendas. 

Uma delas introduziu um processo diferenciado de inclusão de normas dessa estatura no país. Após o advento da Emenda 45, em 2004, uma transformação decorreu da possibilidade de tratados internacionais de direitos humanos serem incorporados na ordem jurídica brasileira com status de normas constitucionais. 

Isso alterou a maneira de enxergar a Constituição, que deixou de ser um código, para ser uma coleção de diplomas. Não faz muito tempo, ela era um compêndio acompanhado de um ato de disposições constitucionais transitórias. Hoje, já não se pode dizer que o seja. Ela recebe, paulatinamente, o acréscimo de novos escritos, admitidos de fontes internacionais, os tratados. 

Existem, atualmente, quatro tratados com envergadura constitucional no Brasil: 1) a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, de 2007, entrada na ordem jurídica nacional em 2009; 2) o seu Protocolo Facultativo, idem; 3) o Tratado de Marraqueche para Facilitar o Acesso a Obras Publicadas às Pessoas Cegas, com Deficiência Visual ou com Outras Dificuldades para Ter Acesso ao Texto Impresso, de 2013, incorporado em 2018; e, finalmente, 4) a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância. 

A propósito desta última, em 28 de maio passado, o Brasil fez o depósito da sua ratificação perante a Organização dos Estados Americanos. Graças a ela, houve significativa extensão do campo dos direitos fundamentais. Muito do que já se argumentava com base em princípios constitucionais, agora está mais bem explicitado pela Convenção. Discriminações diretas e indiretas estão expressamente banidas (e não apenas as de caráter racial). Políticas de cotas (ações afirmativas) foram absorvidas também. Antes, questionava-se bastante se tratamentos de suporte a minorias eram constitucionais (eram, e o STF o reconhecia, apesar da resistência de alguns juízos e tribunais). Esse tipo de discussão perdeu o sentido. Há, também, uma clara proibição dos discursos preconceituosos na internet (não mais admitidos a título de liberdade de expressão). 

De nada adiantará o Congresso pretender legislar em retrocesso: a Lei Maior não acolherá esse tipo de proposta. Todos esses avanços são mais que lei, são a própria Constituição. Aliás, quem não gostou, quem odeia e discrimina, pode deitar na BR, como dizia aquela música.