ARACAJU/SE, 22 de outubro de 2024 , 10:18:31

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Até quando, Catilina, abusarás da nossa paciência?

As Catilinárias constituem uma série de quatro discursos proferidos por Marco Túlio Cícero, exímio cônsul, senador, advogado e orador romano, valendo-se de sua condição para denunciar a postura e comportamento de Lúcio Sérgio Catilina, também senador que se portava de forma antiética contra os colegas, atentando conta a autoridade (auctoritas) do Senado, sendo responsável por arquitetar uma rebelião contra Roma.

Os discursos proferidos em 63 a.c. ficaram imortalizados na frase “Quosque tandem abutere, Catilina, patientia mostra? A pergunta retórica de Cícero vinha acompanhada da resposta: não vês que tua conspiração foi dominada pelos que a conhecem?

Todos os demais discursos são revestidos de fortes denúncias contra condutas inapropriadas para um senador, uma postura inadequada para os padrões morais do império romano, questionamentos acerca de comportamentos que agridem a ética, indagando até quando atos que violam o bom senso, a legalidade e a moralidade pública, seriam tolerados pela sociedade?

Advém desta mesma época a máxima romana atribuída ao imperador Júlio César, que se divorciou de sua esposa Pompeia, após boatos de uma suposta infidelidade, ao cunhar à frase: “A mulher de César não basta ser honesta, deve parecer honesta”.

Faz-se essa rápida incursão pela história do império romano para lembrar a postura adotada por alguns magistrados brasileiros que acreditam ser possível integrarem os postos mais elevados na estrutura do Poder Judiciário, sem prestar contas a ninguém, imaginando que um comportamento funcional e pessoal apontado por muitos como inapropriado, eticamente discutível e moralmente reprovável não deve satisfação à sociedade.

Eis postura absolutista, inadequada e que releva um viés autoritário (magistocrático) de quem, em uma república (res publica), se considera acima do bem e do mal, senhor plenipotenciário de seu destino, não se submetendo a fiscalização (accountability) que atualmente rege a governança pública e todos os seus agentes (dos mais modestos aos mais graduados).

Diariamente a grande imprensa tem noticiado a participação de Ministros integrantes dos Tribunais Superiores em seminários e conclaves jurídicos, geralmente no exterior, patrocinados por empresas que são partes em processos a serem julgados por referidos magistrados e, sem qualquer cerimônia ou constrangimento, muitos desses togados sentem-se completamente à vontade para palestrarem e debaterem em referidos eventos, convertidos em verdadeiros colóquios.

Também não se verifica constrangimento na atuação de Ministros em processos cuja defesa das partes litigantes fica sob a responsabilidade de escritórios de advocacia que contam com a participação de esposas ou de parentes muito próximos como filhos, sobrinhos e afilhados, ainda que em outras demandas.

O que deveria corar de vergonha é repetido com orgulho. Nem mesmo a situação de impedimento previsto no Código de Processo Civil (art. 144, VIII) estabelecendo a impossibilidade de atuação do magistrado em feitos “em que figure como parte cliente do escritório de advocacia de seu cônjuge, companheiro ou parente, consanguíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, inclusive, mesmo que patrocinado por advogado de outro escritório”.

Mesmo parecendo óbvia referida medida que afasta a atuação jurisdicional do magistrado diante da possibilidade de conflitos de interesses, mencionada obviedade não ficou evidenciada para o Supremo Tribunal Federal (STF) que ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 5953/DF) ajuizada pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), declarou inconstitucional referido dispositivo do Código de Processo Civil, prevalecendo o entendimento do Ministro Gilmar Mendes que afirma em seu voto “o fato é que a lei simplesmente previu a causa de impedimento, sem dar ao juiz o poder ou os meios para pesquisar a carteira de clientes do escritório de seu familiar”.

Com amparo na proporcionalidade e na razoabilidade (?) o STF declara a inconstitucionalidade do dispositivo (art. 144, VIII, CPC) e decreta uma situação de verdadeiro “liberou geral”, podendo uma empresa cliente do cônjuge ou parente consanguíneo do Ministro em outro feito, ser julgada pelo magistrado, afinal de contas, não cabe ao juiz conhecer a carteira de clientes dos escritórios de seus parentes.

O resultado dessa flexibilização moral pode ser visto no comportamento do ministro Nunes Marques que em 2022 aceitou uma cortesia de um escritório de advocacia e viajou de Brasília a Paris em um jatinho para passar um final de semana esportivo, assistindo a final da Champions League, aos jogos do torneio de Roland Garros e ao GP de Mônaco de Fórmula 1.

Malgrado o apuradíssimo gosto esportivo do Excelentíssimo Ministro, seria o caso de questionar se realmente é adequado aceitar esse tipo de gentileza de alguém que possuí demandas a serem julgadas por ele enquanto magistrado?

Eis que o douto juiz integrante da Suprema Corte, acreditando que o tour esportivo já tinha sido esquecido e imaginando não dever explicações a ninguém, novamente surpreende a todos ao aparecer, em pleno dia útil e de sessão no STF, na paradisíaca ilha de Mykonos, na Grécia, apreciando as belezas do Mar Egeu, berço da civilização ocidental.

Frequentando um iate luxuosíssimo, o Ministro do STF fora visto comemorando o aniversário do cantor sertanejo Gustavo Lima, deixando-se fotografar ao lado de empresário investigado e depois preso pela Polícia Federal (dono da casa de apostas esportivas Vai de Bet), do governador do estado de Goiás, de modelos, blogueiros e influenceres.

Tudo isso em plena terça-feira, Excelência? Tudo isso a luz do dia, Excelência? Tudo isso sem qualquer explicação, Excelência?

Seria o caso de indagar: até quando abusarás de nossa paciência?

Cícero ao concluir a primeira Catilinária, indaga: Quem, dentre nós, pensas tu que ignora o que fizeste na noite passada e na precedente, onde estiveste, com quem te encontraste, que decisão tomaste?

E arremata o grande orador: O tempora, o mores. (oh tempos, oh costumes).