A automedicação é uma prática comum entre os brasileiros. Dados recentes da Organização Mundial da Saúde (OMS) revelam que cerca de 77% da população no país faz uso de medicamentos sem consulta prévia a um profissional da saúde. Embora os medicamentos isentos de prescrição (MIPs) sejam desenvolvidos para tratar sintomas leves e tenham um perfil de segurança mais elevado, seu uso inadequado ainda pode trazer graves consequências à saúde, como intoxicações, reação alérgicas, dependência química ou mesmo mascarar sintomas de doenças mais sérias.
Nesse cenário, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 1771/19, que propõe liberar a venda de MIPs em supermercados, armazéns e estabelecimentos similares. A proposta é polêmica e divide opiniões, mas levanta uma questão central: estamos dispostos a colocar a conveniência acima da segurança da população?
Segundo o Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas (Sinitox), os medicamentos lideram o ranking de agentes tóxicos em casos de intoxicação registrados no Brasil, representando 29% das ocorrências. Mesmo que os MIPs estejam fora do escopo de medicamentos controlados, isso não significa que sejam inofensivos.
Um exemplo emblemático é o paracetamol, um dos analgésicos mais vendidos no mundo. Quando usado em doses acima do recomendado, pode causar danos graves ao fígado, resultando em insuficiência hepática e, em casos extremos, até à morte. Estudos apontam que boa parte dos pacientes hospitalizados por intoxicação medicamentosa desconheciam os riscos associados ao uso excessivo do medicamento.
Outro exemplo prático é a dipirona, cuja venda é proibida nos Estados Unidos, devido ao risco de uma condição potencialmente fatal, chamada agranulocitose uma grave redução de glóbulos brancos, que pode comprometer o sistema imunológico. Embora a dipirona seja amplamente utilizada em muitos países, incluindo o Brasil, para tratar febre e dor, sua segurança foi questionada em várias regiões e sua venda é regulamentada para que não haja a superdosagem na automedicação.
A proposta de vender medicamentos em supermercados se apoia em argumentos de conveniência e acesso ampliado. De fato, facilitar a compra desses produtos em locais de grande circulação pode parecer vantajoso, principalmente em regiões onde as farmácias são escassas. Contudo, esse tipo de iniciativa ignora a complexidade da questão. Medicamentos não são produtos como qualquer outro; seu uso inadequado pode causar danos irreversíveis.
Supermercados e mercearias não contam com a presença de farmacêuticos, profissionais essenciais para orientar os consumidores sobre a indicação, dosagem e possíveis interações de medicamentos. Sem essa orientação, há um grande risco de que as pessoas comprem medicamentos baseadas em percepções erradas ou até por influência de propagandas enganosas.
Além disso, a fiscalização e o armazenamento adequados são outro ponto crítico. Medicamentos precisam ser mantidos sob condições específicas de temperatura e umidade, algo que nem sempre é garantido em ambientes como supermercados, que também lidam com uma infinidade de outros produtos.
A liberação dos MIPs em locais não especializados também pode incentivar o mascaramento de sintomas de doenças mais graves. Por exemplo, uma dor de cabeça persistente pode ser tratada com analgésicos, retardando o diagnóstico de condições como hipertensão, aneurisma ou mesmo tumores cerebrais.
Estima-se que cerca de 40% das pessoas que praticam automedicação acaba retardando a busca por ajuda profissional, comprometendo a eficácia do tratamento e elevando os custos da saúde pública. Segundo dados da Anvisa, o Sistema Único de Saúde (SUS) gasta anualmente cerca de R$ 50 milhões com o tratamento de complicações relacionadas ao uso inadequado de medicamentos. Ou seja, se os MIPs passarem a ser vendidos em supermercados, os gastos com saúde pública poderão disparar por conta do uso indiscriminado e descontrolado das substâncias.
Entidades como o Sicofase, Sindicato das Farmácias de Sergipe, ABCFarma, Associação Brasileira do Comércio Farmacêutico, a Sbrafh, Sociedade Brasileira de Farmácia Hospitalar, e CFF, Conselho Federal de Farmácia têm se posicionado de forma contrária ao PL 1771/19. Segundo essas instituições, a venda de medicamentos em supermercados fere princípios de segurança sanitária e não considera o impacto que a automedicação desassistida pode ter no sistema de saúde.
Medicamentos não são bens de consumo como qualquer outro. Eles exigem responsabilidade, conhecimento e acompanhamento profissional. A liberação dessa venda em locais não especializados é um retrocesso para a saúde pública. Este é o raciocínio comum entre as entidades, pois sabem das consequências que as pessoas têm ao colocar suas vidas em risco com a compra indiscriminada de medicamentos, que nas prateleiras dos supermercados, vai aumentar significativamente.
É inegável que o Brasil precisa discutir formas de ampliar o acesso à saúde. Contudo, essa ampliação deve vir acompanhada de responsabilidade e planejamento. A venda de medicamentos em supermercados pode, à primeira vista, parecer uma solução fácil para problemas como a falta de farmácias em regiões remotas. No entanto, os riscos associados superam em muito os benefícios.
Promover a saúde exige mais do que simplificar a aquisição de medicamentos; exige educar a população sobre o uso correto desses produtos, fortalecer a fiscalização e garantir que todos tenham acesso a orientação profissional.
Se o PL 1771/19 for aprovado, estaremos enviando à população uma mensagem perigosa: que medicamentos são tão seguros e comuns quanto itens de supermercado. Essa não é apenas uma questão de conveniência; é uma questão de saúde pública. E a saúde deve estar acima de qualquer outro interesse.