A eleição ainda seria dali a quarenta e cinco dias. Os partidos beligerantes digladiavam-se desde a queda do presidente Vargas, botado para correr do Catete pelos seus próprios generais, após a guerra na qual os alemães queriam dominar o mundo. Para Aloísio Bico de Chaleira, “não se devia confiar em gente de farda e coturno”, contrariando o pensamento de Arquimedes de Julião de Maria de Tertulino das Porteiras, que tinha servido nas Forças, em 1932.
Em cada cidade, o PSD ou o PR tomava a liderança do bloco, um levando o outro na cacunda, em disputa contra a UDN. Ali em Ranchinho, município separado de Vila Maria um ano e pouco antes, vivia-se a primeira eleição para prefeito e vereadores. De um lado, Marcolino da Padaria, e, do outro, Orlandinho de João Caolho, aquele do Partido Republicano, levando a tiracolo o Partido Social Democrata, e este, da União Democrática Nacional. Eleitores? Não mais de 1.200. Na separação, Ranchinho ficou com os povoados Carrapicho, Mão da Onça, Zabelê, Toco Aceso e Biribeiras, somando, algumas fazendas de gado pé duro e muitas roças de algodão.
Município novo e ordinariamente diminuto, a ver-se pelo número de eleitores, o fogo da disputa eleitoral ardia noite e dia. As eleições daquele tempo corriam frouxas, cada partido fazendo das suas para angariar o voto dos incautos, que, na verdade, eram todos os votantes. A distribuição de brindes eleitorais ia de sapatos, tecidos para roupas, remédios, chapéus para homens e tudo mais que pudesse garantir o voto, nem sempre garantido, pois tinha eleitores vira-folhas. Eram poucos, mas sempre existiam.
No dia da eleição, cada chefe político matava um boi, para dar de comer aos eleitores, especialmente os que vinham dos povoados e fazendas. Tudo era permitido, até a famigerada boca de urna, a propalada ação de “furar a chapa”, ou seja, trocar a cédula eleitoral não oficial, de última hora, mediante algum acerto. Dona Zélia de Antônio Peixoto da Baraúna ainda lembrava da marchinha carnavalesca cantada com letra apropriada, na eleição de 1935: “Loirinha, loirinha / Em quem foi que você votou? / Eu votei foi em Augusto Leite / E furei a chapa do interventor”. O interventor em questão era Maynard Gomes.
Naqueles dias antes da realização do pleito, eis que morreu a mãe do candidato da UDN, Dona Zeferina de João Caolho, seu marido. Senhora igrejeira, devota de São Francisco de Assis, zeladora da Capela local, que ainda não tinha sido erigida à condição de Paróquia, era querida por muitas pessoas, mas detestada por outras tantas, por conta de sua ativa dedicação à política udenista, sempre espezinhando os adversários, sendo ela, pois, a verdadeira ás da política familiar, mandona que só ela.
O cemitério local tinha sido construído por João de Belarmino da Tijuquinha, prefeito de Vila Maria, ainda na sujeição de Ranchinho àquela cidade. João de Belarmino era do PSD, contrário, dessa forma, à família da pranteada. Mas, a cidade de pés juntos era de serventia geral. Seria preciso chamar o zelador do cemitério, Petrúcio de Rosa do finado João de Bebelo, para acertar a abertura da sepultura onde seria, no tempo devido, erguido o mausoléu. Petrúcio era mais conhecido como Bufa de Alma, o corretor de túmulos, irmão do coveiro Aniceto. Cabia a Bufa de Alma a escolha do local de cada sepultura, em negociação com cada interessado, ora localizando a sepultura ao lado direito, ora ao lado esquerdo, a depender da situação política da família de quem se foi desta para a outra vida. Ao lado direito, ficavam os da UDN; ao lado esquerdo, os da coligação PSD/PR. Não se misturavam.
Em vida, Dona Zeferina manifestara o desejo de ser enterrada no canto do cemitério para onde dava sombra a frondosa jaqueira do sítio de Bertoldo Barata, colada ao muro caiado de novo, na cidade dos mortos. Mas, tal canto ficava ao lado esquerdo, o lado do povo contrário aos udenistas. Uma adversidade a ser enfrentada. Ao ser comunicado da pretensão da falecida, Bufa de Alma disse “não”. Não podia misturar as almas de pessoas de partidos contrários, para não causar um alvoroço noturno de almas penadas, gemendo em brados, para o desassossego dos circundantes e transeuntes. A mistura não daria certo.
A família dos Caolhos não aceitou a ponderação de Bufa de Alma. A vontade da matriarca tinha força de lei. Se preciso, a família apelaria à Justiça ou às armas. Bufa de Alma fincou o pé. Não! Foi então que uma irmã da morta, tida como voz de agouro, proferiu esta sentença contra Bufa de Alma: “Se você não der guarida à minha falecida irmã, vai morrer bufando podridão de enxofre, feito satanás. E não lhe dou nem uma semana de vida”. Foi o quanto bastou. Bufa de Alma, o corretor de túmulos, com medo da prega da velha com cara de bruxa de revista de quadrinhos, aquiesceu. A partir dali, as almas se misturaram no cemitério de Ranchinho. Enfim, no chão do cemitério todos se igualavam.