ARACAJU/SE, 2 de abril de 2025 , 0:37:22

Cara de Sapo

Cara de Sapo desceu a ladeira do Brejo das Pedreiras, fontes de água potável que abasteciam parte da cidade, enquanto outra parte era abastecida pelas Pedreiras da Rua da Capela. Muitas casas, entretanto, especialmente nos subúrbios, contavam com cisternas de água minada, algumas de água salobra, outras de água fina. Das Pedreiras do Brejo, a última tinha a melhor água. A fonte do meio tinha uma água quase boa, enquanto ninguém se servia da primeira fonte porque, em tempos idos, uma moça ali morreu afogada.

O Brejo das Pedreiras fazia parte de um lençol freático muito rico, a ser preservado, embora as autoridades locais, entrava prefeito, saía prefeito, não estavam nem chite para isso. Uma pena e uma vergonha.

Era manhãzinha quando Zé Felipe de Sá Divina do finado Afonso Perna de Berimbau, vulgo Cara de Sapo, desceu a ladeira. Parou ao deparar-se com o pé de murici florido, situado entre o entroncamento que, à direita, dava seguimento às Pedreiras e, à esquerda, dobrava para a saboaria de Chico Costa. A aragem da manhã era quase fria, prenunciando o inverno que se aproximava. Era o início de março. Dali a pouco, seria o tempo de plantar o chamado “milho de São José”, que seria colhido para as canjicas e as pamonhas do São João.

Cara de Sapo deparou-se com Belizário de Pedro Mota, cujo olho esquerdo fora vazado por uma bala disparada pelo soldado Touro Bravo, cujo nome verdadeiro de batismo e certidão ninguém por ali sabia, até porque o dito era das Alagoas, de Jacaré dos Homens, mas que sentara praça na Polícia sergipana. Numa briga à toa, por causa de um jogo de baralho, na banca do 21, ou bacará, de Décio de João Rastro de Corno, bancador inveterado em furna de jogatina de grande procura. Um disse-me-disse sem pé nem cabeça, entre Touro Bravo, que estava perdendo, e João de Maninho, melhor sapateiro das redondezas. No entrevero, o soldado alagoano atirou no desafeto de momento, mas a bala atingiu Pedro Mota, vazando o seu olho esquerdo. Como era soldado, o tenente Janjão Argolo deixou o dito pelo não dito. Azar de Pedro Mota.

Cara de Sapo e Belizário eram primos-irmãos, os pais de ambos eram irmãos, casados com duas irmãs. Além de primos-irmãos, eles eram carne e unha, muito unidos para o que desse e viesse. “Belí – disse Cara de Sapo – você soube que mataram o soldado Touro Bravo, que cegou tio Pedro”? Belizário esboçou cara de espanto. “Não me diga! Então, o sujeito foi prestar contas a Deus”? Cara de Sapo corrigiu o primo-irmão: “Hum! A Deus, nada! Ele deve ter descido para as profundezas do inferno, morar com o diabo, de quem o infeliz devia ser aparentado”.

Belizário ajeitou o chapéu na cabeça. “Aqui se faz, aqui se paga”, disse. “Pai não tinha nada a ver com o jogo lá dele e acabou perdendo o olho. Pai tá cego, mas a besta fera tá morta. Já foi tarde”, complementou o filho de Pedro Mota. “Quem será que matou aquele fio do bute”? Cara de Sapo não sabia dizer. Um acerto de contas, talvez. Alguém que tinha uma rixa antiga. Ou algum desafeto das Alagoas, coisa de famílias em malquerença, daquelas das antigas, do tempo do carrancismo.

Cara de Sapo e Belizário de Pedro Mota seguiram os seus caminhos, um para as Pedreiras, outro para a saboaria de Chico Costa. Quem teria matado Touro Bravo? A pergunta foi martelando na cabeça de Belizário. Merecia um prêmio, quem fizera aquilo. O soldado era dado a enxerir-se para o lado de mulheres casadas. Ali mesmo, enquanto ele destacara, por cerca de um ano e meio, saíram conversas de pulação de cerca de umas duas ou três mulheres. Conversar, o povo de língua solta conversava. Provar, ninguém provava. Daí, por vezes, saíam as misérias.

Belizário não acreditava em pelo menos uma das mulheres que, à boca miúda, andaram falando que tinha caído no bico sujo de Touro Bravo: Tininha, mulher do primo-irmão Cara de Sapo. Não! Tininha, não! Era mulher de tinir, no proceder. Não! Cara de Sapo não seria corno, nem manso, nem brabo. De jeito nenhum. De sapo, ele só tinha a cara arredondada, como o sapo verde da cartilha que era estudada na escola da professora Dona Neném. De qualquer forma, se Tininha tivesse – coisa que não tinha! – escorregado no proceder, a morte de Touro Bravo tinha limpado a sujeira.

Cara de Sapo chegou à Pedreira de baixo. Mirou-se na água límpida. Demorou. Em sua cabeça, um só pensamento: “Tininha! Tininha”! Era o amor de sua vida. Na cidade, eram muitas as línguas ferinas, causando desassossego. Enfim, o que estava feito, estava feito.