ARACAJU/SE, 26 de dezembro de 2024 , 14:23:37

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Consciência humana?

Segundo Jean-Jacques Rousseau, ao perceber que quatro mãos juntavam mais que duas, o homem passou a escravizar o seu semelhante, para ampliar os seus bens (Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens). A propriedade privada seria, assim, a causa das desigualdades entre os seres humanos, como ele o diz.

A escravização cresceu de forma absurda nas sociedades mais desenvolvidas desde a Antiguidade. No caso da escravização dos africanos pelas potências europeias que, sobretudo, estabeleceram colônias no Novo Mundo, com as bênçãos dos segmentos religiosos cristãos, católicos e protestantes, o que foi, deveras, lamentável, a situação gerou revoltas, lutas, protestos, aceitações, defesas intransigentes de escravistas e antiescravistas. Os reflexos estão aí até os dias de hoje, e vêm desde Palmares.

Os escravizados tentaram romper com os grilhões que, de forma insana, os mantinham sob o jugo do senhorio. Foi assim em todo o Continente Americano. Quilombos foram formados, inclusive em Sergipe. Aliás, uma antiga escrivã de Siriri, Dona Ricardina, anotou em livro publicado que, em Nossa Senhora das Dores, foi estabelecido um quilombo, na fazenda João Ventura, que virou subúrbio e bairro, local onde eu nasci, cresci e ainda mantenho a casa que papai adquiriu em 1962. Talvez, parte da minha família paterna seja descendente dos quilombolas que ali se asilaram.

Dentre as revoltas de escravizados, podem ser destacadas as do século XIX, na Bahia, em 1809, 1814 e 1826. Antes, em 1807, houve uma revolta de escravizados em Recife. Mas, na terra dos orixás, a maior revolta de escravizados foi a Revolta dos Malês, em janeiro de 1835. Os malês eram mulçumanos, nagôs, homens pretos de ciência e letras, que lutaram pela liberdade e contra a imposição do cristianismo. Adeptos de religiões de matriz africana também aderiram ao movimento. Os revoltosos eram cerca de 600. Severa foi a repressão e as penalidades depois impostas.

A luta pela abolição acabaria ganhando adeptos na literatura, a exemplo do condoreiro Castro Alves, voz poética maior contra a escravização, bem como na política, e em parte diminuta da Igreja etc. Enfim, veio a abolição de 13 de maio de 1888, que desencadearia, com outros motivos, a queda do Império.

De repente, os escravizados, sem nenhum plano governamental, foram jogados nas ruas e nas estradas, desamparados, enquanto muitos outros continuaram nas senzalas, em situação de escravização continuada. A escravização gerou muitos males. O mesmo se diga do descaso das autoridades, na República instalada um ano após a abolição. Os pretos que, juridicamente, eram comparados a semoventes, continuariam, muitos deles, a ser bestas de carga. A liberdade veio em parte, mas a igualdade, não. Rui Barbosa, disse, em sua Oração aos Moços, que “a regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam”. Estamos longe disso.

Permitam-me repetir o que, mais de uma vez, já escrevi antes: a minha família paterna é dominada por sangue de pretos, com um pouco de sangue indígena e um pouco de sangue branco. Somos os chamados “negros do João Ventura”, até hoje. Com altivez e orgulho. Quando eu estava no curso ginasial, ao passar, num fim de tarde, pela Rua da Capela, ouvi a conversa entre três mulheres. Uma delas falou: “O diretor do colégio disse que aquele negrinho do João Ventura é inteligente. E um negrinho pode ser inteligente?”. Hum! Quando eu passei no vestibular para o curso de Direito, na UFS, em janeiro de 1977, a esposa do gerente do BANESE, ao ser informada pelo marido sobre a minha aprovação, rebateu: “A culpa é da princesa Isabel que libertou os pretos”. Assim mesmo, na “tábua” da minha venta.

Finalizando estas minhas observações pessoais: a minha mãe é filha de um negro, neto de escravizados, e de uma branca, filha de um pequeno senhor de escravizados, meu bisavô Joaquim Leite Silva, do engenho Caiçara. Um dia, um sobrinho da minha avó Rosinha, que morava em Aracaju e era casado com a filha de um grande empresário dos transportes, pediu à tia Aidê, irmã mais velha da minha mãe, que arranjasse uma mocinha para trabalhar na casa dele, com esta recomendação: “Uma de cor, para diferenciar das minhas filhas”. Era um primo do lado branco da família. Eu estava na hora.

Eu cresci, estudei, formei-me, exerci vários cargos públicos, deles saindo sem máculas, graças a Deus. Advogado, professor universitário e, há 8 anos, padre. Fiz a minha vida sem privilégios, sem cotas, sem nada. Esforço próprio e dos meus pais. Porém, quantos pretos tiveram ou têm, como eu, o meio de lograr êxito na vida? Dizem que somos todos iguais. Iguais em quê? Como? Onde? Respeito todas as opiniões, quase sempre carregadas de uma dose exagerada de ideologias, pros ou contras.

O que eu quero mesmo é a igualdade. O respeito mútuo. A ultimamente tão propalada “consciência humana” (subterfúgio para alguns, engodo para outros). Continuarei esperando. Enfim, é muito bonito o que dizem por aí: “Nem preto, nem branco. Minha raça é humana… Respeito não tem cor, tem consciência”. Ufa! Quem dera.