No final do ano passado, foi lançado o excelente livro “Democracia Negociada – Política partidária no Brasil da Nova República”, dos cientistas políticos Leonardo Weller e Fernando Limongi.
Trata-se de abordagem histórica da evolução política brasileira desde os momentos finais da ditadura militar (e, neles, os preparativos para a transição democrática), passando por toda a institucionalidade democrática baseada no presidencialismo de coalização pós-1988 até os anos da década de 2010, incluindo a crise que redundou no impeachment de Dilma Roussef em 2016.
O livro contém uma descrição analítica minuciosa de todos esses episódios marcantes da recente história política, destacando-se a análise crítica dos momentos decisivos da Constituinte de 1987-1988 e de suas principais disputas e, já aqui, a narrativa que permeia toda a conclusão dos autores: o que caracteriza a reconstrução democrática nacional é a negociação exaustiva e não o confronto aberto (confronto aberto que, mencionam de passagem, vai caracterizar os momentos pós-impeachment de Dilma Roussef até a campanha e eleição de Jair Bolsonaro em 2018, assim como todo o período do seu governo).
Na Constituinte, essa negociação entre setores progressistas democráticos e conservadores oriundos da prevalência partidária dos anos da ditadura viabilizou a finalização do texto constitucional, no qual instituíram-se significativas mudanças (ao menos nominalmente), tais como a universalização dos serviços públicos de educação, saúde e previdência, mas não foram impostos à minoria rica os custos necessários para a viabilização do estado de bem-estar social: “O Brasil se democratizou sem que se alterasse profundamente a ordem política e social herdada dos militares: o Executivo seguiu fortalecido em um sistema presidencialista, os partidos oriundos dos velhos Arena e MDB continuaram dando as cartas no Congresso e a sociedade permaneceu marcadamente desigual” (2024, p. 85).
Em certo momento, os autores apontam a conclusão de que “O ressurgimento de militares na cena política, em meio à crise que marcou o governo Dilma e desaguou na eleição de Bolsonaro, não deve ser atribuído ao caráter negociado da transição da virada dos anos 1980” (2024, p. 21).
Fez-se, aí, alusão ao ressurgimento dos militares enquanto agentes com influência na cena política, fenômeno que se inicia sutilmente em 2014, é potencializado no Governo Temer (2016-2018) e vai encontrar seu apogeu nas eleições gerais de 2018 e durante o Governo de Jair Bolsonaro (2019-2022).
Embora não tenha sido o escopo do livro, esta passagem pode ser objeto de considerações críticas.
Com efeito, a história mostra que, após superar períodos ditatoriais em que agentes estatais praticaram diversos graves crimes contra a população e especialmente contra opositores políticos, é indispensável passar em revista de forma aprofundada todo o contexto, com as necessárias investigações, inclusive e principalmente criminais, ensejadoras das responsabilizações jurídicas e respectivos julgamentos, observado o devido processo legal. É o que se chama de “justiça de transição”, no ambiente do cultivo à memória e à verdade.
No Brasil, atravessamos alguns desses momentos ditatoriais (durante o regime do Estado Novo e durante a ditadura militar de 1964/1985). Para além da ruptura democrática, com repressão às liberdades públicas e políticas e aos direitos humanos, nessas ocasiões foram perpetrados, por agentes estatais, crimes como torturas físicas e psicológicas, homicídios, ocultamentos de cadáver, desaparecimento forçado, abusos sexuais contra opositores políticos, dentre outras gravíssimas violências (episódios que a trajetória de luta de Eunice Paiva – viúva do ex-deputado Rubens Paiva, torturado e morto por agentes da repressão e cujo cadáver foi ocultado – em busca da devida reparação histórica e moral, tão bem retratada no aclamado filme “Ainda Estou Aqui” , é exemplo representativo).
Ocorre que, no bojo da transição “lenta, gradual e segura” para a democracia programada pelos militares, foi negociada uma forma de perdão, como se se tratasse de condição para que fosse aceita a transferência do poder político e o restabelecimento do Estado de Direito. Assim é que foi aprovada a Lei nº 6.683/79, que concedeu anistia aos que cometeram crimes políticos ou conexo com estes (art. 1º), considerando-se conexos, para esse efeito, “os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política” (art. 1º, §1º).
Lamentavelmente, consolidou-se a interpretação no sentido de que crimes comuns praticados pelos agentes da repressão contra opositores políticos, durante o regime militar, foram conexos aos crimes políticos praticados no período e, portanto, estariam abrangidos pela anistia concedida. Desse modo, os graves crimes praticados pelos agentes públicos de variados escalões no período da ditadura militar ficaram sem possibilidade de responsabilização criminal.
O que parece é que, ao contrário dessa específica conclusão dos autores, o caráter excessivamente conciliatório e negociador da transição democrática está na raiz da sensação de impunidade e de salvo conduto para que militares e civis sintam-se à vontade para planejar e mesmo executar planos de golpe de estado e de ruptura democrática, incluindo práticas de repressão física e psicológica, e que faz a cidadania brasileira clamar para que, ao menos quanto aos episódios da intentona golpista de 8 de janeiro, venha a ocorrer efetivamente a devida investigação de todos os atos e condutas, para apontamento dos responsáveis em todas as esferas, propiciadoras dos julgamentos, observado o devido processo legal, com as adequadas e justas punições, se for o caso em cada caso, SEM ANISTIA, para que nunca mais se esqueça, para que nunca mais aconteça!