ARACAJU/SE, 5 de fevereiro de 2025 , 11:11:14

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Diante da lei

 

Kafka, cujo centenário de falecimento completou-se este ano, é um gênio literário. Na língua de Thomas Mann e Goethe, há quem o tenha como o maior. Viveu pouco, sofreu muito, escreveu sobre o horror e o sem-sentido da existência em um mundo em desencantamento, em afastamento da religiosidade e de feroz transição de valores. Seus textos ainda fascinam e intrigam. Continuam a provocar reflexões profundas sobre a condição humana e as ansiedades do mundo – tanto o que ele viu, como o que se vê hoje.

Nascido em Praga, em 1883, Kafka viveu em uma sociedade multicultural, porém segregadora. Como judeu de língua alemã, em uma cidade onde o alemão oficial, o tcheco popular e o hebraico religioso coexistiam, ele se sentia um estranho. Essa experiência de exclusão permeia sua escrita, que explora temas como a alienação e a falta de sentido da existência.

Formou-se em direito. Conciliava a vida profissional com a paixão pela literatura (e alguma – talvez muita – boemia). Durante o dia, entrincheirou-se na burocracia de uma companhia de seguros, um trabalho monótono, mas com visão para as desditas existenciais. Viu os primeiros automóveis e fez a análise atuarial dos acidentes neles. Vivenciou a industrialização sem regras de segurança do trabalho e sua infortunística. Catalogou gente mutilada aos montes. Quantificou indenizações por braços quebrados, olhos vazados, rostos partidos, pernas arrancadas, vidas perdidas. Assistiu à Primeira Guerra Mundial. Testemunhou as aberrações que a guerra produz. Essas desgraças eram sua faina de securitário.

À noite, dava vazão à sua criatividade, transformando as angústias e observações cotidianas em narrativas atemporais. Consta que, nesse turno, visitava estabelecimentos de reputação duvidosa onde descarregava as tensões de suas aflições. 

Parêntesis. Recentemente, sua ida a bordéis e seu aparente gosto por pornografia, gerou uma tentativa de “cancelamento” por moralistas anacrônicos. Há idiotas para tudo.

Retornando. Entremeou isso tudo com noivados jamais convertidos em casamentos. Também com uma tuberculose, diagnosticada em 1917, que o levaria a períodos em sanatórios e à morte, aos 40 anos.

Essa variedade de personalidades, oscilando entre o funcionário metódico, o homem fescenino, o doente e o escritor visionário é fundamental em sua obra, notadamente em “O Processo”. Nele, a burocracia e a impessoalidade das instituições são elementos-chave, mas se conectam a um protagonista mulherengo, chamado Josef K. Um bancário graduado, aliás. O paralelo do “K” do sobrenome e do ofício escriturário desse protagonista com os elementos biográficos do escritor não pode ser mera coincidência.

Antes de ir ao cerne do livro, fazer uma breve notícia histórica ajuda a entender o ambiente da narrativa. O início do século XX foi, aos poucos, corroendo a “Belle-Époque”. Da paz do final da centúria anterior, germinou uma paulatina instabilidade política. Esse foi o momento da vida de Kafka, como escritor. Em Praga, então parte do Império Austro-Húngaro, ele presenciou o desmoronamento desse caldeirão cultural e político. Observou a derrota militar e a desintegração da potência em que havia nascido. Presenciou o surgimento da Tchecoslováquia. Para Kafka, essas transformações não eram meros fatos históricos em sequência anódina, mas símbolos de uma desintegração pessoal e social, de um mundo em que certezas se dissolvem em dúvidas. Se nem os impérios eram sólidos, o que seria?

Isso pelo lado da política, da vida social porta de casa para fora. Da porta para dentro, o universo de Kafka também tinha suas oscilações. Criado sob a figura dominadora do pai, Hermann Kafka, o escritor transpôs para suas obras literárias as dinâmicas de controle, culpa e submissão. Pressionado a buscar estabilidade em uma sociedade que impunha rígidas expectativas aos judeus, Kafka personificava o dilema de quem buscava conciliar a sobrevivência social com o anseio por liberdade – inclusive artística.

Essa sensação opressiva de insegurança é retratada em “O Processo”, escrito entre 1914 e 1915. Escrito, mas jamais acabado. Kafka faleceu sem o concluir e deixou instruções para seu amigo Max Brod destruir os seus papéis todos. 

Todavia, Brod preferiu descumprir o comando. Ainda bem. Salvou obras-primas, inclusive esse romance. Organizou a papelada (que não estava sistematizada, ordenada, mas solta), intuindo a ordem dos capítulos e fez publicar o texto, em 1925, mesmo com partes inconclusas. Nele, a burocracia tirana e os tribunais obscuros representam um sistema que julga e condena sem transparência ou lógica. Nada é certo. Nada mesmo.

Dito isto, pode-se passar à história. Em “O Processo”, o personagem Josef K. se vê perdido em um labirinto de tribunais e corredores, metáfora da alienação social e pessoal vivenciada por Kafka. Nesse romance, a frase inicial já dá o tom da narrativa: “Alguém certamente havia caluniado Josef K., pois uma manhã ele foi detido sem que tivesse feito mal algum.” Isso acontece no exato dia em que K. completa 30 anos (quase a mesma idade que o escritor tinha enquanto escrevia essa página). Os guardas o detêm, mas não o mantém preso, o que também soa paradoxal. Eles desconhecem o motivo da prisão, agindo mecanicamente, sem questionar.

Pausa. Essa ênfase na automatização da obediência tem algo de profético: está na raiz de genocídios que, não muito depois, o século XX consumaria, como o Holocausto. Nenhum grande mal dessa ordem é feito sem que muitos aceitem que resoluções superiores são intrinsecamente válidas. 

Prosseguindo. K., logo em seguida, descobre que os guardas trabalhavam no mesmo banco que ele. Mais: que os ambientes em que o processo corre – forenses, por assim dizer – são sempre no interior de casas, por sua vez situadas nas periferias. Que quase todas as pessoas com quem ele se encontra ao longo de um ano – mesmo um pintor, crianças e um padre – estão vinculadas, de algum modo, ao tribunal que o julgará.

Aqui valem algumas conjecturas. Seria isso uma representação de um julgamento ou também de uma perseguição fora do mundo estritamente judiciário? Apenas um delírio? Mas, se for um devaneio, quem não se sente julgado e condenado, às vezes, mesmo sem processo? Sem culpa! Quem não reconhece a existência de poderes paralelos? Os controles e punições da sociedade não estão confinados no universo estatal.

De volta aos fatos do livro. O protagonista inicia o seu “processo” – e aqui a palavra tanto no sentido de procedimento judicial quanto no de provação, de perda da sanidade – cheio de indignação e com espírito ainda dotado de alguma altivez. Era um contrassenso nem sequer saber a que acusação respondia. Segue-se uma narrativa esmagadora, sobre culpas não demonstradas, num universo autoritário, insensível. A forma é a de um pesadelo, em que os labirintos da defesa são tomados pelas sombras do desconhecido. Uma alegoria que qualquer advogado reconhece facilmente.

Mas, de todo o absurdo que o romance contempla, a parábola “Diante da Lei”, é o ponto magno. Ilustra o drama da busca por justiça e de entendimento dela. Ela é narrada por um padre, que se diz capelão do tribunal, dentro de uma catedral. Seria a introdução aos textos da lei. Um homem do campo, procurando acessar a lei, depara-se com obstáculos aparentemente intransponíveis. Um porteiro forte e impessoal impede inicialmente o camponês de entrar no palácio da lei. Adverte-o de que ele não pode penetrar naquele momento, mas talvez depois possa. Diz que, dentro, existem outros porteiros, mais fortes ainda. O pobre homem fica à porta – que remanesce aberta, mas vigiada – uma vida inteira, esperando, sem sucesso, permissão explícita para ingressar. Vez por outra, tenta subornar o guarda – que até aceita os agrados, mas não dá autorização expressa. Ao final da vida, já nos últimos instantes, muitos anos passados, encoraja-se a perguntar por qual motivo apenas ele estava ali, diante daquela porta vigiada. E os outros, que buscam também a lei, onde estariam? Ele é informado pelo vigia que a porta fora feita especialmente para ele, simples cidadão, que, paradoxalmente, jamais a transpôs. Em seguida, já que ele morria, o guarda fecha definitivamente a porta.

Ficam muitas questões, que K. debate com o capelão, todas elas relacionadas ao problema da inacessibilidade da lei – seja para conhecê-la, seja para entendê-la, seja como proteção individual. Teria a proibição inicial sido superada? Teria sido mal compreendida? A ambiguidade compõe a breve história, um manancial de possibilidades interpretativas, mas todas elas convergentes para a dificuldade de apreender o funcionamento do sistema jurídico. 

O livro inteiro é uma obra aberta, mas esse ponto é especialmente dado a exegeses largas. Não à toa, o trecho também foi publicado em separata, como conto autônomo. Jacques Derrida trabalhou-o em um interessante estudo.

Essa é apenas uma fração da obra, mas suficientemente reveladora do valor do enredo inteiro. Em “O Processo”, a falta de um desfecho conclusivo não é uma falha narrativa: é uma escolha deliberada, que reflete a essência da experiência humana. O romance não oferece respostas prontas: ele convida o leitor a enfrentar suas próprias incertezas e a buscar o significado de sua existência em meio à desordem do mundo. Há muito de Nietzsche, Schopenhauer, Kierkegaard nas entrelinhas do livro. Há Dostoiévski também. Kafka era originalíssimo, mas tinha suas inspirações, obviamente. 

Esse romance permanece relevante pois trata de questões perenes. O termo “kafkiano” – usado para descrever situações absurdas, burocráticas e desumanizadoras – é uma ferramenta útil para descrever muitas faces do mundo contemporâneo. Kafka expõe como as estruturas de poder podem desumanizar tanto quem as serve, quanto quem é por elas julgado. 

Com esse livro – indesejado pelo próprio autor -, passado um século após sua morte, Kafka lembra que questionar é tão crucial quanto buscar respostas. Sua obra, espelho das complexidades do século XX, continua válida para compreender o absurdo e a beleza do mundo do século XXI. E, de modo especial, explica muito, mas muito mesmo, do que é labutar no foro. Do que é, não raro, se sentir “como um cão”, tal qual Josef K. se sentiu no epílogo.