Marcelo Galuppo, professor de Filosofia do Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, no episódio 84 do podcast “Supremocast”, fez uma reflexão sobre a conexão entre literatura e direito. Segundo ele, o que advogados e juízes fazem em petições e sentenças é, em essência, contar histórias. Outros profissionais jurídicos também agem assim.
O direito, portanto, seria um grande repositório de narrativas. Seria um espaço em que os fatos ganham forma apenas quando dispostos dentro de uma trama coerente. Não é por acaso, observa Galuppo, que o direito brasileiro seja, desde o Império, um dos berçários de escritores.
Essa constatação contém uma implicação filosófica decisiva: o direito é, dentre outras coisas, uma arte narrativa. A atuação jurídica consiste, em extensa parte, em narrar acontecimentos de modo persuasivo, para reconstruir a realidade sob a ótica de quem defende uma causa ou decide um conflito. A sentença, por sua vez, é uma metanarrativa: o relato que organiza e hierarquiza todas as versões anteriores, para escolher (ou conformar) uma delas como juridicamente verdadeira, como oficialmente preponderante. Assim, o juiz é um leitor e um autor: lê as histórias contadas nas petições e nas contestações, e, a partir delas, compõe uma narrativa de segundo nível que se converterá, com o trânsito em julgado, na versão oficial dos fatos. A coisa julgada é, portanto, a história vitoriosa, a narrativa que o sistema jurídico reconhece como definitiva.
Galuppo sublinha que essa dimensão narrativa do direito está ligada a uma faculdade humana que os juristas tendem a subestimar: a imaginação. Ele propõe um exemplo didático: alguém vê uma pessoa entrar em uma sala com uma faca na mão e, logo depois, vê essa mesma pessoa sair correndo; ao entrar, encontra um corpo caído. A conclusão de que aconteceu um homicídio é produto de um ato imaginativo: houve uma conexão mental entre fragmentos de realidade. Mesmo a operação judicial mais técnica depende desse gesto de reconstrução: ligar dados isolados, inferir nexos causais, formar hipóteses plausíveis. A imaginação é, portanto, tanto quanto a lógica, uma ferramenta de costura de toda racionalidade jurídica.
A literatura cumpre, nesse contexto, uma função elevada: é o exercício por excelência da imaginação narrativa. Ao ler ficção, o jurista treina sua capacidade de construir mundos verossímeis, de compreender pontos de vista distintos e de perceber como diferentes narradores moldam a verdade. Galuppo sugere que, assim como os escritores aprendem a organizar o caos da experiência em forma narrativa, os operadores do direito poderiam aprender a narrar melhor as suas próprias histórias, para as tornar mais claras, mais humanas e mais coerentes. A literatura não seria, portanto, um adorno humanista, mas uma ferramenta epistêmica: um modo de refinar a sensibilidade para os enredos, as ambiguidades e as contradições da vida social que o direito pretende ordenar.
Dessa aproximação decorre também um ganho ético e político. Reconhecer que o direito é uma narrativa não significa dissolver sua objetividade, mas admitir que toda decisão envolve escolhas de perspectiva e critérios de interpretação. O juiz que “reconta” as histórias das partes não apenas aplica normas; ele seleciona uma visão de mundo e a institucionaliza. Nesse sentido, a consciência literária, isto é, a atenção às vozes, aos silêncios, aos pontos cegos de cada história, é também um antídoto contra o dogmatismo jurídico. Ler literatura é aprender a desconfiar das verdades únicas e das estruturas narrativas hegemônicas, inclusive aquelas que se disfarçam de neutralidade jurídica.
Essa concepção do direito como prática narrativa, em que advogados, juízes e outros profissionais do mesmo ambiente, constroem, desconstroem e reconstroem histórias em busca de uma versão verossímil da realidade, abre espaço para refletir sobre como certas obras literárias desnudam o mesmo processo em escala, mais do que individual, social e política. Se, como propõe Galuppo, a imaginação é condição para compreender e ordenar o mundo jurídico, ela também é o terreno em que se revelam as formas de dependência simbólica e institucional que o discurso jurídico pode reproduzir. Nesse ponto, a literatura deixa de ser apenas ferramenta da estética e se torna um instrumento crítico, capaz de interrogar as narrativas do poder, da autoridade e da norma.
Isso não vale apenas para processos judiciais específicos, mas para processos de natureza constitucional, capazes de modificar as estruturas de uma sociedade inteira. Sob essa perspectiva, o romance “Submissão”, de Michel Houellebecq, funciona como um panorama da relação entre direito, moral e política em sociedades fatigadas de racionalidade.
O livro, por uma estranha coincidência, foi lançado no dia do atentado terrorista à redação do jornal satírico Charlie-Hebdo, em Paris: 7 de janeiro de 2025. Os terroristas estavam revoltados por causa de uma charge que representou o Profeta Maomé, cuja imagem sagrada não poderia ser reproduzida, muito menos naquele contexto. Vários jornalistas e chargistas foram assassinados. Ao todo, foram 12 mortos.
A coincidência é bizarra porque a obra imagina uma França do futuro próximo (2022, hoje já passado) em que a mudança de demografia, o cansaço democrático e o vazio espiritual favorecem a ascensão de um governo muçulmano moderado, aceito pela elite intelectual e institucional em nome da estabilidade e de evitar a chegada da extrema direita ao poder.
O protagonista desse enredo chama-se François. O nome não é acidental, é quase um trocadilho, já que o autor, de certa forma, quer simbolizar “o francês”. Ele é um professor universitário cético e apático, que não se interessa por política e cujos impulsos se limitam a comer e beber bem e ao sexo sem maiores compromissos. Após essa mudança na sociedade, legitimada pelas eleições presidenciais, ele assiste à transformação das universidades e do Estado com indiferença crescente, até perceber que sua própria sobrevivência profissional depende da conversão religiosa.
Nessa ficção, o direito aparece não como resistência, mas, sutilmente, quase implicitamente, como instrumento de adaptação, como o mecanismo que organiza a rendição de uma cultura a outra. As eleições, um fenômeno milimetricamente ordenado pelo direito, serviram como legitimação de uma metamorfose estrutural: a França passa a ser um Estado muçulmano.
A crise que precedeu essa transformação, retratada por Houellebecq foi, em última instância, uma crise narrativa: a perda da capacidade de imaginar alternativas à ordem política dominante no pós-guerra e depois do processo de descolonização, em que duelaram a centro-esquerda e a centro-direita em um tédio político chapado.
Na sociedade islamizada que se segue, mulheres voltam ao ambiente doméstico, a poligamia é legalizada e as universidades são deslaicizadas. Uma mudança constitucional se revela.
É uma suposição literária, uma proposta distópica polêmica, pois pode ser enxergada como xenófoba, mas é, também, um exercício de imaginação constitucional. Na França foi o islamismo, mas em outras sociedades pode ser um outro modelo cultural, religioso ou ideológico que se aproprie do Estado e reconfigure por inteiro um modelo de país. E, como imaginou Houellebecq, isso pode vir sem maior conflito, por meio de eleições. Basta que uma determinada designação religiosa cresça o suficiente para formar maioria de votantes.
É fácil fazer ilações a partir dessa hipótese, em outros países, inclusive o Brasil. A leitura de “Submissão” permite ver que a imaginação social, e a jurídica em particular, se atrofiada, pode conduzir à submissão normativa: o direito pode se render à outras formas de construção do comportamento, como a religião.