Coloquei coragem e petulância na mesma panela. Cozinhei um romance. Título inicial: A nova cozinheira. Vedado para não parecer ser livro de receita culinária. Bolei outro em seguida: Atalaia meia-noite. E tome não sei quantas páginas datilografadas com a máquina da biblioteca do padre, porque era lá que me aquartelava. Já não me lembro se escrevia e depois datilografava. Ou se datilografava direto. Eu tinha quatorze para quinze anos. Nem tudo a memória salvou. O romance aludido, por mais de sessenta anos, ficou bem sepultado, a ponto de só agora me lembrar que existiu, movido pelo fedor que o impregnou por todos os poros, uma história totalmente fora do contexto da realidade dos anos então vividos.
No pico da montanha, o romance envolve um estudante, de família de posse, e a nova cozinheira, evidentemente sem nenhum barão no meio dos antepassados. Como não poderia deixar de ser, a oposição da família, dele, claro. No papel de conselheiro, um professor, que os dois, quando podiam, iam derramar queixas, mestre a fugir das boas regras de comportamento, pelo apego ao líquido que passarinho não bebe. O conselheiro, sem guardar semelhança com o Acácio, de Eça de Queiroz, nem com o Aires, de Machado de Assis, ouvia e filosofava. Um beberrão, que, quando não estava embriagado, nem de ressaca, cobria os dois jovens de incentivos, que não moviam folhas, muito menos moinhos. A verborréia do amor era a tônica.
O final, trágico, à Camilo Castelo Branco: a cozinheira, sentindo sem terra para pisar, se suicida nas águas da Praia da Atalaia, a meia noite em ponto; o namorado, no dia que marca o fato, religiosamente, acende velas nas areias da praia – como se o vento permitisse que velas ali fossem acesas -, fato que, na manhã seguinte, servia de espanto para quem por ali estivesse ou passasse. O mistério renascia ano a ano. Faltava só a capelinha, com placa comemorativa.
Não guardei cópia, o que me permitiria hoje constatar se há algo que revele vôo de besouro ou de formiga de asa. E, cópia, para quê? Na realidade, a biblioteca morreu, o rapaz deu lugar a um senhor de setenta e cinco anos. A cópia, o tempo fez bem em deixá-la para trás, sem risco algum de ser publicada depois da sua morte. Desse pecado estava livre. Louvado seja Deus!