ARACAJU/SE, 2 de dezembro de 2024 , 7:06:43

logoajn1

Dois roteiros

A morte de Francisco Alves Terto, ocorrida em 5 de outubro de 2012, foi o estopim de uma cadeia de eventos que culminou em um chocante episódio de violência no fórum de São José do Belmonte, Pernambuco, mais de uma década depois. 

Francisco Cleidivaldo Mariano de Moura, o acusado, confessou ter atirado em Terto. Ele relatou que, ao procurar um burro perdido e questionar Terto, recebeu uma resposta grosseira: “Saia da minha propriedade, seu ladrãozinho safado!”, o que deu início a uma discussão. Sentindo-se ameaçado por Terto, que avançava com um pedaço de madeira, Cleidivaldo inicialmente disparou a arma para cima. À medida que a agressão continuava, efetuou mais dois disparos, o último dos quais atingiu Terto na barriga. 

Após o incidente, Cleidivaldo fugiu para Salgueiro, onde foi preso em flagrante. Gravemente ferido, Terto foi transferido para um hospital em Arcoverde, onde sucumbiu aos ferimentos 18 dias depois.

A casa de Cleidivaldo foi incendiada e ele passou a evitar São José do Belmonte, temendo por sua vida.

Essa é a versão da defesa. O Ministério Público discorda dessa narrativa e diz que a morte de Terto decorreu do estado de embriaguez de Moura, que, por motivo banal (um burro), foi ao encontro de sua vítima fatal. 

Mas a Justiça ainda não teve como decidir qual das duas histórias estava correta. Em 29 de novembro de 2023, a tragédia ganhou um novo capítulo quando Cristiano Alves Terto, filho da vítima, quis vingar a morte do pai ao tentar assassinar Moura em plena sessão do tribunal do júri. A tentativa falhou.  

Ao ser preso e ouvido, Cristiano relatou que esperou o momento adequado para a vindita. Informou que planejava atirar contra Moura na saída, porém, quando o avistou, não resistiu. Asseverou que a arma estava guardada para o momento oportuno. Disse que Moura matou o seu genitor quando ele contava com 15 anos de idade. Declarou que a sua mãe ficou com seis filhos para criar. Destacou que a sua intenção era atingir somente Moura. Aduziu que utilizou um revólver calibre 38 e descarregou as seis munições. Quatro delas atingiram o algoz de seu pai. Confirmou ter desferido coronhadas na cabeça de Moura. Contou que, após os fatos, tentou se evadir do local, porém, foi abordado pela polícia. Afirmou que Moura nunca saiu de sua memória. 

O julgamento de Moura foi interrompido por esse episódio brutal e será remarcado. Ele sobreviveu aos quatro tiros que recebeu e segue respondendo à acusação da morte de Terto em liberdade. Cristiano, por outro lado, foi preso imediatamente após o ato e já foi pronunciado (isto é, encaminhado a julgamento pelo júri). A situação parece talhada para o cinema pernambucano. De certo modo, soa como um roteiro de Kleber Mendonça Filho.

O episódio recorda, em alguma medida, outro caso de violência ocorrido no espaço forense, mas na capital paulista, há mais de setenta anos. Também digno de um roteiro de filme. Desta vez, ao estilo de Quentin Tarantino.

Crisógono de Castro Correa era advogado e capitão farmacêutico do Exército. Sua vida era uma enorme folha corrida criminal: esteve envolvido em falsificações de diplomas universitários, em 1932, e no assassinato do cunhado, em 1933. Posto na reserva, foi-lhe proibido o uso da farda.

Anos mais tarde, ele foi acusado do sequestro de uma fazendeira idosa, em Ituverava, São Paulo. Teria visado obter à força uma procuração para administrar seu patrimônio. Em 1949, foi condenado a nove anos de prisão pelo juiz Hely Lopes Meirelles, que viria a ser reconhecido como um dos maiores juristas de seu tempo. Crisógono, todavia, ignorando reputações e posições, alegando-se injustiçado, atirou no magistrado, ferindo-o sem gravidade. Foi preso no ato. 

Na tarde de 31 de janeiro de 1952, Crisógono, subtraindo armas dos armários dos militares do quartel onde se encontrava preso, conseguiu – estranhamente – deixar as instalações castrenses. Compareceu fardado ao Tribunal de Justiça de São Paulo para a sessão de apreciação do seu recurso perante a 2ª Câmara Criminal. Após o desembargador Paulo Costa votar pela redução da pena do sequestro para seis anos e o seu colega Odilon da Costa Manso manter a condenação original, o terceiro julgador, Alípio Bastos, solicitou vistas do processo, interrompendo o julgamento. 

Nesse momento, Crisógono, proclamando ser injustiçado, sacou uma pistola que fora furtada no quartel e abriu fogo contra os desembargadores na sala que ficava no sexto andar do prédio. Foi obstruído pelo seu advogado, João Bernardes da Silva, o que lhe tirou a mira e permitiu que os alvos togados fossem salvos dos seus cinco disparos. Ele empreendeu fuga, mas, perseguido sob os gritos de “prendam o assassino!”, foi capturado no terceiro piso, após haver ingressado no gabinete do juiz Darci Arruda Miranda, outro respeitado jurista. Ali, alegou estar fugindo de um linchamento. Foi desarmado. Em seguida, detido. Descobriu-se que portava uma segunda arma.

Ouvido pela Corregedoria de Justiça, Crisógono deu uma justificativa bizarra para o seu ato tresloucado: afirmou ser contra a instituição do júri e teria usado do expediente para chamar a atenção do Congresso. Disse que não atirou para matar, mas com esse propósito político. Voltou para o quartel, preso.

Em 16 de setembro de 1955, um júri popular o condenou a 15 anos de reclusão, por 5×2, por tripla tentativa de homicídio qualificado. Sua defesa coube a Valdir Trancoso Peres, notável criminalista, e Carolina Souto Maior. Disseram, sem sucesso, que não houve a intenção homicida e que o gesto era o desespero de um acossado. No entanto, o próprio Crisógono desejava fazer a própria defesa, o que lhe foi parcialmente negado. Isso serviu de motivo para novo debate processual.

Após recursos, o Supremo Tribunal Federal anulou esse julgamento, concedendo-lhe o direito de se defender diretamente. Em um novo júri, ocorrido em 4 de abril de 1960, Crisógono foi condenado a oito anos de prisão, desta vez por duas tentativas de homicídio. Ele recorreu da decisão, mas faleceu no cárcere, pouco depois, em 8 de maio de 1960, antes do fim do processo. 

O que atira no réu e o que tenta matar os seus juízes: os dois casos se conectam. Os fóruns sempre foram espaço para a explicitação dos dramas humanos mais intensos. Lágrimas e dores não raramente estão nas páginas dos autos. O pior da humanidade acaba documentado em um processo criminal. Mas, apesar de muitos deles trazerem brutalidade e sofrimento para discussão judicial, a violência real deve ficar da porta do fórum para fora. A que se pratica dentro de seu recinto é um paradoxo. É a negação da ideia mesma de um ambiente isento das paixões, no qual o direito é trabalhado com palavras e declarado por um terceiro neutro justamente para impedir a barbárie. Os casos de Cristiano Alves Terto e Crisógono de Castro Correa ilustram de maneira crua como a busca por justiça pelas próprias mãos é uma degeneração desse conceito vital para a civilidade.