Sequenciando o artigo publicado há duas semanas, aqui no Correio de Sergipe, a palestra de Dom Luciano Duarte para os maçons, na Loja Capitular Cotinguiba, focou o aspecto da miséria e da fome que atormentavam várias populações ao redor do mundo e, claro, entre nós também, não só ontem como hoje. Ele tocava na questão do subdesenvolvimento:
“O país subdesenvolvido é aquele cuja economia está baseada nas exportações de matérias primas, de algumas matérias primas principais, como por exemplo o café e o cacau etc., os minérios. Haverá outras definições, no entanto, sob este ângulo e, como eclesiástico, quero abordar aqui o problema do subdesenvolvimento; mas o vejo como uma categoria vital, para usar a expressão empregada pelos sociólogos. Uma categoria vital que abrange o homem todo. O Homem subdesenvolvido vive no submundo cujas facetas cruciais e dolorosas eu queria analisar aqui brevemente. Segundo a entrada já aberta por lúcido trabalho sobre subdesenvolvimento, nós constatamos em primeiro lugar que o mundo dos subdesenvolvidos é o mundo da fome”.
A fome permeia boa parte do mundo desde priscas eras. Em tempos diversos e em diferentes regiões da Terra, a fome assolou populações inteiras, sob díspares causas: fatores climáticos, guerras e outras ações deletérias, humanas ou não. Como cristão, posso lembrar a fome que assolou o Egito por sete anos, no tempo de José, filho de Jacó (cf. Gênesis, cap. 41). Mesmo no mundo presente, enquanto alguns vivem de festas, outros vivem na [e até da] fome. Vergonhosamente.
Não quero tecer loas gratuitas a Dom Luciano. Como todo ser humano, ele teve suas virtudes e seus defeitos. Todos nós os temos. Loas e acusações não faltaram a ele. Naquele momento, diante dos maçons, o bispo auxiliar dissertava com clareza sobre um problema crucial:
“E no pensar no subdesenvolvimento, o meu olhar se espraia por estes dois terços da humanidade que não podem matar a fome das suas entranhas; mas como quero pisar ao chão da realidade, não quero considerar, apenas, os males que estão distantes de nós, mas convido os que me ouvem, e convido a mim mesmo a trazer os fios desta consideração para a realidade que é nossa. O estado de Sergipe, dos nossos irmãos que nasceram aqui, neste estado marcado pelo sofrimento, pela pobreza, pela fome, pelo atraso que agora à custa de mil penas vai caminhando para a sua decolagem, para a sua partida na direção de um novo estágio em busca do desenvolvimento”.
Estávamos em 1968. O lema do governador Lourival Baptista era “Pacificação e Desenvolvimento”. A PETROBRAS, que começava a todo vapor, era uma grande esperança para ajudar a alavancar o nosso desenvolvimento. Também era criada a Universidade Federal de Sergipe, que teve em Dom Luciano um dos seus pilares.
Dom Luciano discorria sobre o subdesenvolvimento, sobre a fome, mas também fincava os olhos na poesia, na poesia trágica do Nordeste, cabralina, a cantar as nossas misérias:
“Ora, nós estamos diante de um mundo no qual dois terços vivem em condição lamentável de fome [era, à época, um quadro, deveras, muito desolador]. O subdesenvolvimento é o submundo da fome. O subdesenvolvimento é o da doença. O nosso olhar se espraia nestas multidões famélicas das Índias; mas não é preciso ir tão longe; basta que n[os nos adentremos um pouco em nosso estado, e saberemos que problemas graves, problemas de fome e de doenças aí estão desafiando a solidariedade humana, são nossos problemas dos quais não temos tomado conhecimento, mas que são gritantes e reais. Como é comovente na sua beleza este poema de João Cabral de Melo Neto, “Morte e Vida Severina”. Como nos comove as entranhas da alma aquele fecho da sua harmonia poética quando diz: ‘E ali vai esse filho do nordestino, com a mesma cabeça grande sobre o mesmo pescoço fino e as mesmas pernas esquálidas e essa cabeça grande, que a custo se equilibra’. São centenas, são milhares, são dezenas de milhares dos filhos dos nordestinos que vivem nesta situação. Porque para nossa aflição, o submundo da morte, o subdesenvolvimento da superpopulação, da promiscuidade, do homem que ainda não atingiu plenamente a sua condição de pessoa, que vive tangido pelos instintos primários que a natureza plantou dentro do seu corpo”.
A vida Severina ainda está por aqui, em muitos cantos. Quanto à morte Severina, esta continua cada vez mais presente, sobretudo a atacar pessoas pobres, negras, cujas vidas não importam para quem vive de festas, para quem, do asfalto, ignora o morro, onde não há apenas bandidos. Aliás, os maiores bandidos não estão lá em cima, nos morros apinhados. Estão posando de “boa gente”. No planalto, na planície. Enfim, no asfalto.