Maurício Gentil
Em 05/10/2025, a Constituição-Cidadã de 1988 completou trinta e sete anos e, com a promulgação da Emenda Constitucional nº 138 — que altera a Constituição para permitir a acumulação remunerada do cargo de professor com outro cargo de qualquer natureza (antes, nesse item, só era permitida a acumulação com outro cargo técnico ou científico) —, na sexta-feira, 19/12/2025, alcançou uma média superior a três emendas e meia por ano aprovadas em todo esse período.
Vale detalhar isso um pouco mais, porque também houve mudanças na Constituição produzidas durante a Revisão Constitucional realizada entre o segundo semestre de 1993 e o primeiro semestre de 1994 (por determinação do art. 3º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias): ali, ao todo, foram aprovadas seis “emendas constitucionais de revisão”.
Finalmente, convém apontar os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil com equivalência a emendas constitucionais [nos termos do art. 5º, § 3º (acrescentado à Constituição pela Emenda 45/2004)]: a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, o Tratado de Marraqueche para Facilitar o Acesso a Obras Publicadas às Pessoas Cegas, com Deficiência Visual ou com Outras Dificuldades para Ter Acesso ao Texto Impresso, e a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância.
Cada uma das emendas, por si só, justifica uma análise específica e detalhada, muito embora existam aquelas que se destacam por efetuar transformações estruturais nos regramentos constitucionais sobre matérias de elevada relevância político-institucional, especialmente no que se refere aos direitos fundamentais.
Todavia, o nosso ponto, aqui, é a reflexão sobre a rigidez e a mínima estabilidade que os textos constitucionais precisam possuir — e a discussão sobre se, nesse cenário de alta volubilidade política, a Constituição de 1988 ainda pode ser considerada uma constituição rígida.
Com efeito, se Constituição rígida é aquela que impõe mecanismos e procedimentos mais solenes e dificultosos para sua reforma — como iniciativa restrita, quóruns qualificados de aprovação, dois turnos de votação, impossibilidade de reapreciação de matéria rejeitada na mesma sessão legislativa, além de um núcleo material intangível ao poder de reforma (as chamadas “cláusulas pétreas”) —, a Constituição de 1988 possui todos esses elementos e, ainda assim, atinge esse patamar impressionante de mudanças em seu conteúdo normativo.
E, se é verdade que boa parte dessas emendas se explica pela necessidade de alterar conteúdos que bem poderiam estar regrados em nível infraconstitucional, também é verdadeiro o argumento de que, dada a vedação do retrocesso social, conquistas materiais em se tratando de direitos fundamentais e a imposição de políticas públicas voltadas ao interesse social e econômico devem ser formalizadas no mais alto nível hierárquico do ordenamento jurídico.
Nesse contexto, a explicação para o fenômeno encontra-se no campo da política: os mecanismos de rigidez e mínima estabilidade constitucional estão presentes, cabendo à população, em sua diversidade, eleger (pelo voto) composições congressuais que não conduzam a situações como a de maiorias parlamentares tão amplas e estáveis, capazes de impor alterações constitucionais sem qualquer necessidade de negociações políticas sérias e programáticas.
Ainda assim, no campo político, é necessário enfrentar os problemas decorrentes do modelo do “presidencialismo de coalizão” — em crise e, segundo alguns cientistas políticos, já inexistente, tendo sido substituído por um ativismo parlamentar que se consolidou ao longo da última década —, além do fisiologismo explícito da atuação parlamentar, cuja maior expressão é o chamado “centrão”.
De todo modo, ainda que formalmente os mecanismos da rigidez constitucional estejam presentes, há uma lacuna política que urge preencher. É inadmissível que a Constituição dita Cidadã se permita reformas estruturais de alta envergadura em seu conteúdo e materialidade sem que sejam submetidas à aprovação popular direta.
Já em 2005, a Ordem dos Advogados do Brasil, com apoio de diversas outras entidades sociais representativas e a condução intelectual de Fábio Konder Comparato, apresentou ao Congresso Nacional uma proposta de reforma política com o objetivo de potencializar os mecanismos de democracia participativa preconizados na Constituição, incluindo os seguintes pontos prioritários: criação da iniciativa popular de plebiscitos e referendos; possibilidade de o povo decidir, por plebiscito, sobre a realização das políticas econômicas e sociais previstas na Constituição, bem como sobre concessões de serviços públicos e alienação do controle de empresas estatais; exigência de decisão popular para a alienação de bens pertencentes ao patrimônio nacional; extensão do referendo a emendas constitucionais e a tratados internacionais; obrigatoriedade de referendo em quaisquer leis de matéria eleitoral; prioridade na tramitação de projetos de lei de iniciativa popular; e impedimento de alteração ou revogação dessas leis sem a concordância popular.
O tempo só reforçou a pertinência dessa proposta. Diversas emendas constitucionais foram aprovadas à revelia de uma discussão mais ampla com a sociedade, e muitas delas trataram de transformações profundas no pacto social, com impacto direto e imediato em todo o tecido social e no regramento instrumental necessário para viabilizar o efetivo cumprimento dos objetivos constitucionais da República, fixados no art. 3º: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade ou quaisquer outras formas de discriminação.
Já passou da hora de rever esse ponto, que precisa, com a máxima urgência, ser relançado ao debate público e assumido como compromisso de atuação política e de governo, a ser sufragado em eleições.