Marquinho fez parte da minha infância e da juventude. Morava cinco casas depois da minha. Eu o conheci ainda pequeno – acho que era pouco tempo mais novo que eu -, portador, infelizmente, de Síndrome de Down. Nunca estudou. A mãe foi seu anjo de guarda. Apesar da proximidade que a vizinhança provocava, só chegamos a trocar algumas palavras – nem diálogo pode ser denominado -, nos anos oitenta, quando Marquinho passou a frequentar a casa de Alba, que era sua vizinha. Foi então que, em uma e outra ocasião, nos falamos, eu a tratá-lo de Carlinhos, ele a me replicar, Carlinhos, não, eu sou Marquinho, no que eu pedia desculpa, e voltava a chama-lo de Carlinhos, recebendo de chofre a mesma resposta.
De Marquinho, muitas histórias, entre as quais a de comunicar a mãe que ia para São Paulo. Então, se dirigia ao quintal, onde passava um bocado de tempo, até que, perto do almoço, retornava. Lá para as tantas da vida, passou a frequentar as missas e, num gesto de bondade de algum dos cantores, a fazer parte do coro. A voz desafinada se destacava das demais, como se entoasse uma música diferente da dos outros. O padre, secamente, o excluiu do coro. Marquinho afundou numa tristeza danada, sem entender o motivo de seu desligamento.
O céu de Marquinho não apresentava as cores da tranquilidade. Último dos filhos, a preocupação reinava no ar, assunto que, mesmo que fosse evitado, pairava como urubu à espreita do momento certo para o ataque. A tempestade anunciava-se no seu destino, depois que a mãe morresse. Aconteceu. Quem teria paciência para tomar conta de Marquinho? As ocorrências se precipitavam. Primeiro, a retirada da casa onde nasceu e morou até então, num tempo que já englobava mais de trinta anos. Como encarou a ausência da mãe e a mudança de casa e de cidade?
Alba desenhava o quadro irritada, a revolta imensa na narrativa do que Marquinho viveu antes de morrer. Dele me lembrei um dia desse quando me deparei com um senhor de idade, portador da mesma síndrome, com uma senhora ao lado, esperando na calçada o momento certo de atravessar a avenida. Aí me lembrei de Carlinhos, não, eita, errei, escusas, retifico, de Marquinho, vindo à tona o sorriso inocente da contestação que fazia. É como se tivesse, outra vez, a ouvi-lo.
Membro das Academias Sergipana e Itabaianense de Letras