O que deveria acontecer com sujeitos que rompem com normas sociais, mas não são infratores da lei? Como deveria ser tratada a autonomia de pessoas consideradas “diferentes” ou “loucas”, que não fazem mal a terceiros? O que faz alguém não merecer escuta? Qual o papel da família e das instituições na manutenção da dignidade de uma pessoa?
Essas dúvidas não têm resposta uniforme: dialogam com a moralidade. Envolvem fronteiras de liberdade. Estão abraçadas na cultura. Deitam-se em um plano não meramente natural, linear, óbvio.
Na vida concreta, no campo dos sentimentos cotidianos, quem convive com um viciado em entorpecente tende a ver o fenômeno do consumo de drogas de um modo diverso de quem proclama, numa sala de aula ou em uma mesa de bar, que as pessoas são livres para fazerem de si o que bem entendem.
Essa é apenas uma hipótese. Há várias outras situações imagináveis. A de um fumante que deixa o cheiro de seu prazer espalhado pelos cômodos. A de um alcoólatra, que nem sempre é uma presença agradável, mesmo para os que o amam. O ébrio que é um problema no ambiente de trabalho. Doente ou indisciplinado? Demissível ou digno de tratamento? A de uma pessoa em situação de rua que coloca os seus papelões na calçada e dorme sob a marquise de uma loja. O que há de fazer o comerciante?
A lista não é pequena. As gradações não são fáceis de estabelecer. Quando o incômodo passa a ser um dano?
Por isso mesmo, talvez a arte ajude a iluminar essas perplexidades. A literatura é um jeito de visualizar ideias que perambulam pelo mundo – e, por isso mesmo, também passeiam pelo direito. Vistas de um ângulo diferente, não puramente normativo, as coisas podem parecer distintas do que se costuma acreditar que são. Ler ficção ajuda a decifrar a realidade. Produz estranhamento e fertiliza o pensamento.
Em A Vegetariana, de Han Kang, escritora sul-coreana laureada com o Prêmio Nobel de Literatura de 2024, a protagonista, Yeonghye, decide, abruptamente, sem explicações racionais, abandonar o consumo de carne. Teve um sonho e, depois dele, evitou comer essa matéria, que lhe sabia a morte.
Essa opção é recebida com surpresa por seu marido, com violência por sua família e com insensibilidade por instituições médicas. Aos poucos, ela se afasta – ou é alijada – do mundo social. Despedaçam-se todos os vínculos que a sustentavam como esposa, filha e irmã. O corpo de Yeonghye torna-se, assim, o lugar de sua resistência silenciosa contra a tentativa de colonizá-lo com uma vontade que não é a sua.
Em A Metamorfose, de Franz Kafka, Gregor Samsa acorda demudado em inseto gigantesco. Sua transformação física instaura uma cisão com os ambientes do trabalho e da família, uma vez que ele já não pode mais prover o sustento do lar. Sem meios de se comunicar, passa a viver isolado em um quarto, alimentado com restos e gradualmente esquecido por todos. Sua condição de sujeito de consideração – e de direitos, portanto – desaparece com a perda da sua forma humana.
Ambas as obras revelam uma estrutura de exclusão semelhante: quem profana a normalidade, evade-se da expectativa, é privado da linguagem e da empatia. Há, portanto, um processo de despersonalização. É arte, é fantasia, mas é luz sobre a realidade.
Han Kang é contundente: Yeonghye não tem voz narrativa no romance. Sua história é contada pelo marido, pelo cunhado e pela irmã. Kafka não fica atrás: Gregor tenta comunicar-se, mas seus ruídos animalescos são recebidos com medo ou desprezo. Ambos perdem, assim, o direito de serem ouvidos a sério. Mesmo quando as pessoas próximas dizem querer ajudar, querem-no sob o prisma da própria vontade, não da do outro, já descaracterizado como ser humano pleno.
A ausência de voz está ligada à ideia de desconformidade. É como se essas pessoas se tornassem intrusos no mundo que se espera perfeito, ajustado, adequado. Quando deixam de agir conforme os padrões normativos, os personagens tornam-se, de início, segregados, mas, sob certas circunstâncias, são vistos como “relativamente incapazes”, e, por isso, passíveis de curatela, interdição ou internação. São formas jurídicas de proteção que, embora necessárias em muitos casos, também podem operar como mecanismos de silenciamento. Em Yeonghye, isso se dá pela internação psiquiátrica forçada; em Gregor, pelo confinamento doméstico compulsório.
As escolhas de Yeonghye são constantemente desautorizadas. Sua recusa em comer carne é tratada como doença. Sua sexualidade é controlada ou instrumentalizada. Sua tentativa de autodeterminação é interpretada como delírio. O que distingue uma escolha autônoma de um ato insano? Quem é o legítimo árbitro desse limite? Quem tem a prerrogativa de dizer como outra pessoa pode viver?
O caso de Gregor Samsa expõe outra face do controle: a lógica produtivista que define o valor de uma pessoa a partir de sua utilidade. Ao deixar de trabalhar, Gregor perde “função social” e é reduzido a estorvo. A família, que antes o enaltecia (porque era dependente dele), transforma-se em algoz de seu ente já não mais querido. Há aqui um elo a ser feito com as obrigações de cuidado: quando o amor se converte em rejeição?
Tanto Yeonghye quanto Gregor são punidos por sua diferença. E essa punição não é estatal, mas social: família, médicos, vizinhos, todos colaboram para sua exclusão. A metáfora é clara: há um conjunto de normas invisíveis que definem quem merece existir plenamente. O direito, muitas vezes, homologa essas convenções sociais, naturalizando preconceitos, excluindo corpos e pensamentos dissidentes. Às vezes, faz o contrário: busca obstar discriminações. A tensão existe. É preciso escolher um lado.
A crítica aqui é ao modelo social que exige normalidade, coerência, utilidade. Num mundo regulado por tais exigências, o sujeito que se permite ser como pode, como deseja – não como é desejado: que se recusa, que enlouquece, que silencia — é visto como ameaça. Mesmo que não faça mal a ninguém.
Ainda que não se precise chegar aos extremos de se declarar alguém ‘incapaz”, existem os julgamentos sociais. Não são incomuns as tentativas de higienização comportamental. Aqui e alhures. Nos Estados Unidos, recentemente, certas palavras passaram a ser oficialmente evitadas em documentos governamentais federais. É como se apagando a palavra, desaparecesse o problema.
Mas o mundo não é o que os arquitetos de normalidade esperam. Há pessoas com sofrimento psíquico, internadas sem consentimento; transgêneras ou não-binárias; em situação de rua ou de pobreza extrema; usuárias de drogas lícitas (ou ilícitas); ou com deficiência cognitiva. Também há mulheres que se recusam a cumprir papéis tradicionais. Existem os dissidentes políticos. São muitas as formas de existir. Não cabem em caixas, prateleiras, rótulos. Os seres humanos buscam a felicidade – e a sobrevivência – por caminhos variados. Padecem de dificuldades peculiares e suas alegrias e prazeres são individualizados.
A Metamorfose e A Vegetariana revelam que a norma social, quando inflexível, transforma-se em instrumento de exclusão, mesmo sem previsão legal de punição. Quando alguém pode ter a sua autonomia questionada razoavelmente? Quando pode/deve ser abandonado? Não é fácil medir, não é fácil saber.
As narrativas de Yeonghye e Gregor, em sua radicalidade alegórica, servem como potentes lentes para expor os mecanismos sutis de exclusão e despersonalização que podem operar mesmo sob a égide da lei, alertando para as consequências da inflexibilidade diante da alteridade.
Houve avanços. Já existe todo um campo do direito antidiscriminatório. Mas há de haver uma reflexão constante sobre as insuficiências estruturais ao lidar com formas de existência que desafiam as categorias ortodoxas. O que se anseia é um direito mais responsivo à complexidade da condição humana: tolerante, paciente, compreensivo com o desespero, com o cansaço e com o sofrimento. Logo, que faça o amálgama de liberdade e igualdade com fraternidade. Clichê, mas ainda distante de ser compreendido por inteiro.
Alvitra-se outro tipo de olhar: o da escuta ética e crítica diante da insuficiência estrutural do universo normativo para lidar com formas de existência que não cabem em moldes tradicionais. A literatura, nesse contexto, não oferece soluções, mas desestabiliza certezas e amplia o horizonte de sensibilidade. Revela dores. Tece esperanças. Estimula resistências.
Essas duas obras seminais ajudam a cogitar um mundo – e, portanto, um direito – mais empático, mais aberto à diferença, mais cuidadoso com o corpo e ideias alheios e com a alteridade, a loucura e a divergência. Elas dialogam com a filosofia de Hannah Arendt, Michel Foucault, Giorgio Agamben e Byung-Chul Han. Essa literatura lembra ao direito aquilo que ele tenta – ou é tentado a – esquecer: que toda norma é também uma escolha política. No caso, sobre quem merece viver plenamente.JO