Paira uma névoa sobre os episódios políticos e jurídicos da República Velha. É como se, da Proclamação da República, em 1889, até a Revolução de 1930, os governos todos fossem uma coisa só. Essa desatenção com mais de 40 anos de história cobra o preço de não se entender, como se deveria, as raízes oligárquicas da administração pública nacional e o papel do direito na construção de engenhos de acomodação política.
Daí que valha lembrar que a primeira transição entre presidentes civis ocorreu em razão da eleição de 1898: Prudente de Morais (1841-1902) transferiu o comando do governo para Campos Sales (1841-1913). Este foi eleito em uma situação peculiar, que veio a produzir um sistema de gestão política cujos ecos são ouvidos até hoje.
Diversos grupos republicanos haviam se reunido no Partido Republicano Federal, que elegeu Prudente de Moraes, em 1894. Em 1897, os florianistas (oposicionistas) e os prudentistas (situacionistas) disputavam primazia política e se dividiram.
Lauro Sodré (1858-1944), senador pelo Pará, foi lançado candidato presidencial pela oposição e Campos Sales, governador de São Paulo, pela situação. A tendência, no momento dos lançamentos de candidaturas era favorável ao oposicionista.
Mas, em 5 de novembro de 1897, o presidente Prudente de Moraes sofreu um atentado no qual morreu o ministro da Guerra, o marechal Carlos Bittencourt. O clima de comoção causado pelo episódio, atribuído a florianistas, mudou o ambiente político e o apoio ao governo cresceu enormemente.
Em 1º de março de 1898, Sales teve 420.286 votos contra 38.929 de Sodré. Como vice-presidente, foi eleito o senador pernambucano Francisco de Assis Rosa e Silva (1857-1929), com 412.074 votos. Ele venceu o senador mineiro Fernando Lobo (1851-1918), que alcançou 40.629 sufrágios. Naquele tempo, o presidente e o vice eram votados separadamente.
Antes mesmo da posse, Sales viajou para a Europa onde fechou acordos financeiros com bancos estrangeiros e tomou um polpudo empréstimo de 10 milhões de libras para saneamento de dívidas (o “funding loan”). Esses compromissos impunham medidas de austeridade de despesas que teriam de ser ratificados pelo Congresso, inçado de florianistas. O Legislativo, por sua vez, preocupava-se com as eleições parlamentares de 1899, nas quais temia-se um velho problema: o reconhecimento de mandatos.
Como não havia uma entidade como o Tribunal Superior Eleitoral (nascido apenas em 1932), era o próprio Legislativo quem reconhecia os eleitos. Acontecia, porém, que, não raro, os distritos mandavam duas atas paralelas, de votações igualmente desencontradas, com indicação, consequentemente, de eleitos diferentes. A definição do vencedor, feita dentro da própria Câmara, era desgastante, além de acirrar violências.
A solução que foi engendrada modificará o Regimento Interno da Câmara dos Deputados e a história do Brasil.
O foco inicial da mudança foi sobre o fato de que as sessões preparatórias, que decidiriam os membros da “Comissão de Reconhecimento de Poderes”, eram presididas pelo deputado mais idoso. Mas, com a mudança regimental, advieram algumas exceções: se estivessem entre os diplomados o presidente da legislatura anterior (ou um de seus vices) a presidência deveria recair sobre um deles. A partir disso, seriam escolhidos os membros da comissão.
A identificação do presidente da Câmara, Carlos Vaz de Melo (1842-1904) com o governo Sales, permitia o controle do processo de composição da Comissão, que incluiria a “degola” de elementos oposicionistas indesejados. Não por acaso, a primeira vítima foi Francisco Glicério (1846-1916), líder da oposição a Sales.
Mas isso só aconteceria se o primeiro filtro tivesse sido superado. Outra reforma regimental foi a de que os diplomas passariam a ser reconhecidos apenas se fossem expedidos pela maioria das juntas apuradoras dos distritos eleitorais. Como as juntas apuradoras eram nomeadas pelos governadores, a estes foi dado, na prática, o poder de dizer os eleitos, e, por conseguinte, de sustentar o presidente da República.
Nascia, assim, por meio de uma manobra regimental (logo, jurídica), um sistema de acomodação política que sobreviveria por décadas. O presidente da Câmara no período anterior escolheria os membros da Comissão de Verificação. Esta chancelaria os nomes que tinham sido ungidos pelos governadores, depurando eventuais indesejados remanescentes. O sistema representativo brasileiro estava oligarquizado. Era a “Política dos Governadores”.
Era uma estrutura escalonada: o presidente da República, a partir desse primeiro momento, passou a controlar o Congresso e a apoiar os seus aliados nos estados, prometendo não intervir neles. Os governadores, daí por diante, elegiam os candidatos à chefia da nação indicados pelo presidente que se retirava, assim como parlamentares fiéis ao futuro governo. Um degrau abaixo, ficavam os “coronéis”, que, favorecidos localmente pelos governadores e representados pelos parlamentares extraídos de sua base econômica, comandavam os “currais eleitorais”, onde estavam os eleitores, que não tinham voto secreto e se submetiam ao “cabresto” do líder local.
Dali em diante, as eleições presidenciais passavam a ser contagens de governadores. Onde existia apoio do governador, o candidato a presidente teria mais de 70% dos votos. A fraude eleitoral era óbvia, mas sufocada por um sistema construído sobre a base mesma de sua existência. Eventuais fissuras estaduais eram administradas pela solidez desse mecanismo, cuja ruptura exigiria que os estados mais importantes debandassem, concomitantemente, desse pacto.
Isso não ocorreu e só com Getúlio Vargas (1882-1954) as coisas vão mudar um pouco. Diz-se um pouco porque a “Política dos Governadores” de Campos Sales acaba. Mas não finda o poder que os líderes regionais têm de formar bases parlamentares que irão cercar (e eventualmente derrubar) governos federais. Mas isso fica pra outro artigo.