O físico e prêmio Nobel alemão Albert Einstein cunhou grandes e preciosas frases, sendo uma das mais verdadeiras a que afirma: “Triste época! É mais fácil desintegrar um átomo do que um preconceito enraizado”.
Essa dificuldade fica mais evidenciada quando os maus exemplos vêm de ídolos e de gente com enorme capacidade de influenciar seguidores e fãs. Referida postura fortalece o discurso de ódio ao normalizar e sedimentar práticas preconceituosas, intoleráveis e criminosas.
É o que está acontecendo com a torcida argentina, parte de sua seleção, políticos e até redes de TV portenhas. Desde a final da Copa do Mundo de 2022 no jogo entre Argentina e França, quando o time de Messi se sagrou tricampeão mundial, vencendo nos pênaltis a seleção liderada por Mbappé, que das arquibancadas era possível escutar o seguinte cântico, extremamente racista e ofensivo: “Eles jogam pela França, mas são de Angola. Que bom que eles vão correr e se relacionam com transexuais. A mãe deles é nigeriana, o pai deles camaronês, mas no passaporte: francês”.
Na final da Copa América disputada no último dia 14/07/24, a Argentina venceu a Colômbia por 1×0, sagrando-se bicampeã. Após receber a taça e as medalhas, alguns atletas no ônibus de volta ao hotel acharam uma boa ideia entoar esse grito de ofensa. A cantoria ignominiosa foi transmitida ao vivo em uma live veiculada pela rede social do jogador Enzo Fernandes, sendo possível identificar, além do meio-campista do Chelsea, cinco outros integrantes da seleção (Lo Celso, Palácios, Lautaro Martinez, Riulli e Rodrigues), repetindo alegremente esse hino racista e homofóbico.
Após a imensa repercussão negativa e diante do risco de perder patrocinadores, Enzo Fernandes veio a público em sua rede social para se desculpar, informando que foi pego pela euforia. A justificativa soou artificial e até estranha, pois a alegria, a piada ou a decepção não são justificativas para a ofensa e para o preconceito.
Imediatamente lembrei da lição de Freud em seus ensinamentos sobre os chistes e a relação com o inconsciente. Afirma o pai da psicanálise que “Numa brincadeira pode-se até dizer a verdade”. A desculpa esfarrapada de que falou sem pensar, fez um gracejo ou comentário empolgado, não apaga ou minimiza o racismo, pelo contrário, deixa a postura preconceituosa ainda mais evidente. Não existe racismo recreativo ou eufórico. Existe racismo.
A omissão dos demais jogadores da seleção argentina ao não se posicionarem publicamente contra essa infâmia e pedir que a torcida parasse de ecoar referido grito de intolerância foi tema de debates, inclusive com cobranças públicas pelo silêncio de Lionel Messi, capitão e líder maior da equipe, provocando a demissão de um assessor da Casa Rosada.
O resultado da condução tosca de um tema sério, foi o encorajamento e incentivo ao racismo nos estádios. Seis dias após a final da Copa América em jogo pelo campeonato argentino, a torcida do River Plate fez uma homenagem para Enzo Fernandéz, ex-jogador do time. No intervalo da partida passou a repetir na arquibancada do Monumental de Nuñez a música racista cantada pelos jogadores argentinos na celebração do título.
Normalizaram o discurso de ódio na Argentina. Uma postura execrável passou a ser vista como algo comum em um país que buscou excluir o negro de sua história e sempre defendeu teorias contra a miscigenação. Infelizmente a relação entre racismo e futebol argentino é antiga, sendo inúmeros os péssimos exemplos de sua torcida em jogos pela Libertadores da América e Sulamericana, principalmente quando enfrentam adversários brasileiros. São vários os episódios grotescos de torcedores imitando macacos, jogando bananas dentro do gramado ou contra a torcida adversária, fazendo grunhidos.
É o discurso de ódio relevando sua face mais horrenda. Quando essa conduta ocorre em território nacional ou contra brasileiro, tem-se a configuração do crime etiquetado no art. 20 da Lei nº. 7.716/89, consistindo em “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”, fixando-se uma pena de reclusão de um a três anos, sendo que a prática no contexto de atividades esportivas, religiosas, artísticas ou culturais majora a pena para dois a cinco anos, além de proibição ao agressor de frequentar os locais das práticas esportivas, artísticas ou culturais destinadas ao público (art. 20, §2º-A, da lei 7.716/89 inserido pela lei nº. 14.532/2023).
A FIFA após o evento com os jogadores da seleção argentina afirmou que vai abrir uma investigação. É pouco. O combate efetivo ao racismo e aos discursos de ódio exige uma punição real. Muito mais que campanhas educativas (necessárias, mas não suficientes) é preciso sanções esportivas (suspender determinada seleção ou equipe cujos atletas praticaram atos racistas de jogos e competições oficiais por um período) e banir a torcida desta seleção ou equipe dos estádios por um largo interstício, como forma de reprimenda, mostrando ao mundo que a prática do racismo, da homofobia, da misoginia, da xenofobia e toda forma de preconceito não pode mais ser tolerada.
Enquanto nada de concreto (além do discurso e das campanhas publicitárias) for realmente posto em prática, tem-se uma cultura de permissividade com essa prática abominável, fazendo com que a intolerância seja disseminada e encontre eco em seus seguidores.
Em obra dedicada ao tema, o filósofo francês André Glucksmann afirma: “O ódio acusa sem saber. O ódio julga sem ouvir. O ódio condena a seu bel-prazer. Nada respeita e acredita encontrar-se diante de algum complô universal. Esgotado, recoberto de ressentimento, dilacera tudo com seu golpe arbitrário e poderoso. Odeio, logo existo”.
Para muitos torcedores, o discurso de ódio gera identidade, sinônimo de pertencimento, sentido para uma vida repleta de vazio, frustrações e violências. É preciso a adoção de práticas eficazes no combate a intolerância, exigindo-se uma atuação pronta e eficiente das instituições, autoridades, estado e toda a sociedade. Chega de desculpas, omissões e comportamentos que minimizam o preconceito. É preciso conter essa chaga que nos envergonha enquanto indivíduos e nos diminuí enquanto seres humanos.
A desfaçatez de alguns e o silêncio oportunista de outros, principalmente atletas, artistas e intelectuais, diante de tema tão relevante e necessário, podem ser uma ótima bússola para nos mostrar quem efetivamente deve ocupar o papel de ídolo.