Depois de chupar duas suculentas laranjas de umbigo, mel, mel, mel, Toniquinho de Zozó de Maria Dulce Cara Preta bebeu um caneco d’água, arrastando-o do pote posto sobre a cantareira da casa de Dona Cordulina do finado Chico Serrote, sua avó paterna. Bebeu e arrotou. Ao passar por sua avó, que catava feijão sobre a velha mesa de cedro, forrada com um plástico transparente, levou dois cocorotes no cocuruto da cabeça, enquanto a avó ralhava: “Eu num já disse que beber água depois de chupar laranja, faz mal? Dá açúcar no sangue”. Os dedos ossudos da velha causaram uma dor lancinante no pequeno.
Berrando um estrepitoso “aí!”, Toniquinho saiu com lágrimas nos olhos e um choro entalado na garganta. Não chorou na frente da avó, para não lhe dar prazer. Foi chorar lá fora, no quintal, debaixo do pé de manga rosa. O casco da cabeça em fogo.
Quem disse que chupar laranja e beber água fazia mal? Vó Dulcinha nunca lhe disse nada daquilo. Sua mãe, Dona Zozó, também não. A vó Cordulina devia estar desmiolada. As lágrimas banhavam o seu rostinho trigueiro. A cabeça apoiada nos braços cruzados sobre os joelhos.
Toniquinho começou a dialogar consigo mesmo. “Se ela mandar eu ir comprar tempero na bodega de seu Zuzu, eu num vou”. Limpou com a mão esquerda a secreçãozinha que escorria dos buracos da ventinha também em fogo. “Num vou”! Não era só a cabeça que doía. Doía também o seu coraçãozinho, a sua alma. Ele não tinha merecido o castigo da avó. Castigo sem sentido. Não tinha feito nada demais. Nenhum malfeito. Nenhum desmando. Não tinha pegado em coisa alheia. Não tinha jogado pedras nas frutas do quintal. Não tinha mexido com os dois cágados. Não tinha feito nada. “E ela quase afundou minha cabeça”.
A manhã corria a meio. A luz do sol tocava o rosto de Toniquinho, penetrando pelas frestas entre a folhagem da mangueira. Os cocorotes foram injustos. Ainda que a avó lhe quisesse dar um ensinamento, não era preciso tamanho castigo. Dois cocorotes. Com os ossos duros da mão encarquilhada, ossuda. “Eu num fiz nada, num fiz nada”. O pranto irrompeu mais uma vez. Era uma dor muito mais moral do que física. Era a dor de uma criança contra a injustiça.
Rex, o cãozinho vira-lata, achegou-se dele. Latiu. Lambeu sua mão. Ele não quis agrado, embora fosse tão dedicado ao vira-lata pintado, quase como um dálmata. Mas, era apenas um vira-lata, sem pedigree. Arrependeu-se. Mesmo chorando, estalou os dedos da mão esquerda. Rex sacudiu o rabo. Latiu de novo e meteu-se entre as pernas do menino, que lhe acariciou a cabeça. “Melhor você que vó. Você num me dá cocorote”.
Abraçou-se com Rex. O choro estancou. Porém, recomeçou ainda mais sentido. “Eu num mereço isso. Num fiz nada, nada”. O cãozinho vira-lata parecia compreender o companheiro de tantos folguedos. Lambeu suas mãos e seu pescoço, no tronco nu, sem camisa. Companheiros que se entendiam, que se gostavam, que não se feriam, que não causavam mal, um ao outro.
Zé de Felipe Cagão, que limpava o vasto quintal da avó paterna de Toniquinho, preparando-o para o plantio do milho de São José, pois o mês de março estava no início, acercou-se do menino e do vira-lata, que continuava se enroscando nele. “Qué qui foi, Toniquinho”? O menino amuou. Enxugou as lágrimas com as costas da mão. “Nada, não, ‘seu’ Zé”!. O trabalhador insistiu: “Nada não, não. Alguma coisa tem. Foi sua avó? Essa velha é bruta como um coice de mula. Num sei porque eu trabalho pra ela. Também, se eu num trabalhar, o mato vai engolir quintal, casa e essa velha danada, porque ninguém mais quer trabalhar pra ela”.
Toniquinho levantou o rosto marcado pelas lágrimas sentidas por causa dos cocorotes, por causa da injustiça sofrida. “Ela gosta de me dar cascudos. Minha vó Dulcinha num faz nada disso. Ela gosta de mim de verdade”.
Zé de Felipe Cagão disse o que Toniquinho jamais diria: “Um dia, o diabo vem buscar essa velha”. Toniquinho não queria tanto assim para sua avó. Só queria não levar cocorotes sem os merecer.