ARACAJU/SE, 7 de setembro de 2024 , 21:06:45

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O pau d’arco e o ente da escuridão

O tanque do pasto de Tibúrcio Caolho era fundo e de águas escuras. Diziam, na Gameleira, que ali morava um ente da escuridão, que arrastava moças e rapazes para o fundo. Dizeres que, segundo Caolho, vinham dos antigos, dos tempos do Império, quando a primeira moça a ser puxada pelo tal ente foi uma sobrinha do avô do Barão do Araticum, herói da Guerra do Paraguai. Herói, aspas, pois línguas sem vexame alardeavam que o tal Barão nunca que pisou os pés num campo de batalha, menos ainda no Paraguai. Tinha, isto, sim, título de coronel da Guarda Nacional, comprado a peso de ouro e, quem sabia, o título de Barão não passava de lorota dele mesmo, que, de batismo, se chamava Humberto Loureiro de Araújo Cintra, proveniente de Pernambuco.

O Barão do Araticum fez história naquelas paragens. As terras de Tibúrcio Caolho e de mais uns cinquenta proprietários tinham sido do Barão, que passara para um filho e deste para um neto daquele. Ao morrer, o neto do Barão, que não tinha filhos, deixou a fortuna para cinquenta e três sobrinhos, havidos de oito irmãos e irmãs, falecidos antes dele próprio, embora fosse o mais velho da filharada de seus pais. O neto do Barão veio a falecer aos 102 anos.

Certo advogado, novato no ramo das judicações, foi quem pegou o inventário do neto do Barão. Uma confusão, era dividir as terras, contíguas, entre os cinquenta e três herdeiros. Um mundão de terras. Porém, o novel advogado, apesar de sua pouca experiência na papelada processual, esquadrinhou, com a ajuda de um fiscal da Prefeitura, para isso regiamente pago, quinhão por quinhão, medindo cada um na base da vara de 2,2 metros, para achar cada tarefa de terra, sabendo-se que um hectare equivalia a 3,3 tarefas. Medida local.

Domingo. Sol de janeiro a pino. Quebrava a tarde por volta das 14 horas. A feira semanal da pequena cidade já estava nos finalmentes. Bancas e caçuás sendo recolhidos. Dinheiro em notas sebentas sendo contado pelos feirantes. Últimos compradores na pechincha de fim de feira.

No cartório do único ofício da cidade, Termo de Comarca, o advogado, devidamente engravatado, suava a bicas. Calor infernal. Além dos cinquenta e três herdeiros, entre homens e mulheres, maridos ou esposas de muitos deles. Alarido. Disse-me-disse. Cochichos. Palavras em tom de altercação. “Silêncio!”, pediu o advogado, quase afogado no próprio suor. A custo, o silêncio se fez.

“Vocês já têm conhecimento do croqui, que foi apresentado pelo fiscal, ‘seu’ Totonho Cospe Fogo, dividindo as terras do neto do Barão em partes iguais, como manda a lei”. O advogado sacou um lenço e enxugou o rosto e o pescoço. Sentiu as tripas roncarem. Ainda não tinha almoçado na pensão de Dona Chiquinha de Belo, mãe do oficial de justiça daquele Termo.

O advogado prosseguiu com o palavreado. Nenhuma contestação. “Bem, como todos parecem concordar com o que foi mostrado no croqui, agora só resta aos que ainda não assinaram as procurações, assinar, para eu dar entrada no processo do inventário amigável”. Ouviram-se alguns “Muito bem, doutô!”.

Quando tudo parecia correr às mil maravilhas, uma voz fanhosa fez-se ouvir no meio da pequena multidão: “Tá tudo bem, e num tá, ‘seu’ doutô!”. Água fria na fervura. “E o que é que não está bem, ‘seu’ Tibúrcio?”. O advogado gravara o nome do contestador, porque era o que mais o tinha aporrinhado, para que fosse feita a medição e a partição das terras. Um piolho de cós, a dizer-se no vulgo.

“Num é pra encrencar, não, seu doutô, mas tem um senão que precisa ser arresolvido. Sem isso, vai ter confusão”. Cochichos e xingamentos. Fome, sede, calor, o advogado sentia. Suspirou. Tudo parecia encaminhar-se a contento e aquele sujeito, que jamais enganara o advogado, pelo seu jeito mofino, mas arranhento, agora colocava sal no doce.

“Muito bem, ‘seu’ Tibúrcio. Qualquer questão tem que ser resolvida agora. Qual é o problema?”. O sujeito contestador coçou o pé da orelha esquerda. “Olhe bem, seu doutô. O finado nosso tio, o neto do Barão, que Deus o tenha num bom lugar, me deu um pau d’arco, bem antes de morrer. Esse pau d’arco, pelo que vi, ficou no quinhão de Diomedes, meu primo. E eu quero o pau”. O advogado suspirou. Apoiou os braços no balcão do cartório, pelo lado de dentro, onde estava. O escrivão, que cochilava, despertou.

“Quem sabe que o neto do Barão deu esse pau d’arco a ‘seu’ Tibúrcio?”. Ninguém respondeu. O advogado não perdeu tempo: “Tudo bem. Quem aí conhece esse pau d’arco?”. Um dos primos de Tibúrcio Caolho, Zé de Naninho disse que conhecia. “E quanto vale a madeira desse pau?”. Indagou o advogado. “Vale uns quinze mil cruzêro, doutô”! O advogado puxou a carteira e retirou duas notas de dez mil cruzeiros. “Aqui está, seu Tibúrcio. Mais do que vale o pau d’arco, que ninguém diz saber que o neto do Barão lhe deu, em vida”. Tibúrcio Caolho retrucou: “Quero dinheiro, não. Eu quero é o pau”.

Fome, sede, calor… O advogado, quase imberbe, abriu a pasta, sacou um berro, calibre 38, cano curto, colocou-o sobre o balcão e vociferou: “Pegue o dinheiro, ‘seu’ Tibúrcio! Eu não estou aqui para brincadeira. Chega!”. Todo mundo se assustou. E Tibúrcio, ainda mais caolho, não teve alternativa. Pegou o dinheiro e ficou sem o pau.

Tempos depois, ele mesmo inventou a história do ente da escuridão no seu poço, para evitar que as pessoas ali pescassem e tomassem banho.