A expectativa de vida do brasileiro, atualmente, é de 77 anos, segundo o IBGE. Essa é a janela média existencial por aqui. É o intervalo cronológico estatisticamente chancelado para atravessar uma vida que valha a pena e que deixe um legado.
Sílvio Vasconcelos da Silveira Ramos Romero (1851-1914) precisou de menos para se tornar um dos maiores intelectuais brasileiros de todos os tempos – e, também, um dos mais esquecidos. Verdade que, em seu tempo, a esperança de vida era bem menor: em 1900, segundo o mesmo IBGE, a expectativa de vida era de apenas 33,7 anos. Seja como for, longa para o seu tempo, breve para hoje, Romero preencheu os seus dias como poucos. Em 63 anos, foi um fenômeno de realizações.
Nasceu em 23 de abril de 1851, em Lagarto, Sergipe. Seus pais eram portugueses: André Romero, comerciante, e Maria Vasconcelos da Silveira Ramos, dona de casa. Suas primeiras letras foram em Lagarto, na fazenda da família. Seguiu, em 1863, para o Rio de Janeiro, onde foi aluno do Ateneu Fluminense. Em 1868, mudou-se para o Recife, a fim de estudar Direito. Formou-se em 1873.
Isso faz de Romero um contemporâneo do movimento designado “Escola do Recife”. Sob a liderança de Tobias Barreto (1839-1889), e na companhia de outras eminências intelectuais daquela faculdade, como Aníbal Falcão (1859-1900), Franklin Távora (1842-1888), Araripe Jr. (1848-1911), Clóvis Beviláqua (1859-1944), Higino Cunha (1858-1943), Graça Aranha (1868-1931), Artur Orlando (1858-1916) e Martins Jr. (1860-1904), Romero e essa jovem intelectualidade pugnavam pelo fim do regime legal de escravidão e pela República. Era a “Geração de 1870”.
Ainda no período da faculdade, Romero colaborou em periódicos. Era um tempo de efervescência intelectual e de intensos debates. A Guerra do Paraguai (1864-1870), o Movimento Abolicionista, o republicanismo: tudo isso era substância para textos e discussões. Somavam-se a tais cenários a emergência e consolidação de correntes filosóficas que exerceriam grande influência no pensamento daqueles idos: o positivismo, o evolucionismo e o darwinismo, de modo especial. Todas elas inseminaram a visão de mundo de Romero com ideias renovadoras e podem ser percebidas, embrionárias, nos seus artigos e ensaios de jovem acadêmico.
Retornando a Sergipe, foi promotor público em Estância, em 1874. Em 1875, foi eleito deputado provincial. Nesse mesmo ano, publicou “Etnologia Selvagem”, indicando seu interesse em temas das origens culturais nacionais, área na qual se aprofundará. Buscou, então, uma cátedra na faculdade onde estudara. Na banca, foi questionado pelo professor Coelho Rodrigues (1846-1912) sobre determinado tema. Em resposta, assinalou que: “Nisto não há metafísica, senhor doutor; há lógica!”. O examinador retrucou que a lógica não excluía a metafísica. Romero fuzilou: “A metafísica não existe mais! Se não sabia, saiba”. O avaliador respondeu: “Não sabia!” Romero: “Pois saiba! Vá estudar!” Indagado se fora ele, Romero, que a matara, o professor ouviu: “Foi o progresso, foi a civilização!”. O examinando abandonou o recinto. Era o polemista nascendo, sob o claro influxo do “zeitgeist”.
Em 1876, mudou-se para Parati, no Rio de Janeiro. Era, agora, juiz de direito. Casou-se com Clarinda Diamantina Correia de Araújo, com quem terá quatro filhos. Em 1878, publicou “A Filosofia no Brasil” e “Contos do Fim do Século”, alternando produção acadêmica e literária, o que fará por toda a vida. Em 1880, candidatou-se à vaga de professor de filosofia do Colégio Pedro II, apresentando a tese “Interpretação Filosófica na Evolução dos Fatos Históricos”, com a qual foi aprovado. Lecionou ali por quase três décadas.
Havendo fixado residência na Capital Federal, sua produção intelectual crescia. Colaborava em jornais e revistas, ora na crítica política, ora na literária. Em 1882, publicou a “Introdução à História da Literatura Brasileira”. Nela exporá a sua compreensão da literatura menos pelos aspectos estéticos e mais pelos aspectos sociológicos, sua grande contribuição nessa área. Os textos literários, para ele, eram os meios, as fontes para os estudos de caso de verificação das teorias filosófico-científicas do seu tempo.
Em 1886, ficou viúvo. No ano seguinte, casou-se com Maria Liberato, com quem teria mais três filhos. Em 1892, novamente enviuvou. Casará outra vez, desta feita com Maria Petronila Pereira Barreto, pouco depois. Com ela terá 12 filhos, o que elevará sua prole a 19 rebentos.
Em 1888, publicou sua obra magna: “História da Literatura Brasileira”, um dos clássicos do pensamento nacional. Nela refinou as ideias antes dispersas sobre as ideias difundidas no Brasil. Em 1891, com o estofo dessa trajetória, tornou-se professor da Faculdade Livre de Direito do Rio de Janeiro e, no mesmo ano, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
Das refregas políticas locais não se esquivou. Apoiou, ao lado de Manuel Valadão, o movimento que derrubou o General José Calasans (1863-1948) do governo estadual, em 1894. Era um dos “pebas” (republicanos florianistas) que se contrapunham aos “cabaús” (monarquistas recém convertidos ao republicanismo). Em 1899, quando os grupos rivais fizeram um acordo, elegeu-se deputado federal, por Sergipe. Nessa passagem, foi relator do projeto de Código Civil, que não chegou a ver aprovado. Na Revolta de Fausto Cardoso (1862-1906), ocorrida em agosto de 1906, ficou ao lado do seu contemporâneo de faculdade, contra o governador Guilherme de Campos (1850-1923). A insurreição, que tomou o governo por poucos dias, fracassou: Cardoso foi morto na praça que hoje leva o seu nome.
Ao tempo em que consolidava sua reputação de estudioso dos temas nacionais e da filosofia, foi também reunindo prestígio. Por meio de debates travados em jornais tornou-se o maior polemista brasileiro de todos os tempos. Seu estilo agressivo, ácido, que até hoje soaria rude – mesmo em tempos de cizânias pelas redes sociais – fazia seus textos temíveis. Meteu-se em célebres discussões com Machado de Assis (1839-1908), Teófilo Braga (1843-1924) e José Veríssimo (1857-1916), para citar apenas três das mais famosas.
Morreu em 18 de julho de 1914, em Niterói, onde passara a residir, dois anos antes.
O Aurélio define polímata do seguinte modo: “Polímata: [Do gr. polymathés.] S 2g. Aquele que estudou ou sabe muitas ciências; polígrafo; polímate.” A definição calha em Romero. Em uma quadra histórica em que formadores de opinião, parlamentares e juristas às vezes gabam-se de sua escassa cultura e são até louvados por isso, fiando-se em boas relações e virtudes de salão, é justo investir algum tempo em alguém que evitou essa planície e se destacou como titã do pensamento, dedicando sua vida – longa ou curta, mas indubitavelmente intensa – à disputa culta – embora sujeita a erros, como qualquer ser humano. É o que faremos, nas próximas semanas, neste espaço.