ARACAJU/SE, 12 de março de 2025 , 8:29:20

O presidente argentino, o golpe das criptomoedas e “la garantia soy yo”

Evânio Moura

 

No início dos anos 90 do século passado ficou famosa a propaganda da marca Semp Toshiba em que um falso japonês tentava vender um vídeo cassete que imitava o original e quando questionado se o produto tinha garantia e procedência, repetia o bordão “La garantia soy yo”.

A publicidade visava coibir a pirataria, desestimulando os consumidores a comprarem eletrônicos de origem duvidosa (vendidos na época principalmente pelo Paraguai). A expressão virou sinônimo de malandragem, esperteza, enganação, uma “milonga”, como dizem los hermanos argentinos.

Eis que no último dia 14 de fevereiro o presidente da Argentina utiliza-se de sua conta pessoal no X (ex-Twitter) aproveitando-se do fato de ter milhões de seguidores e, valendo-se da condição privilegiada de líder de uma nação, divulga uma nova criptomoeda batizada de $LIBRA, afirmando em tradução livre que “A Argentina liberal está crescendo. Este projeto privado será dedicado a incentivar o crescimento da economia argentina financiando pequenos negócios e empreendimentos. O mundo quer investir na Argentina. $LIBRA”.

Abaixo da postagem constava um link com o tema “viva la liberdad” direcionando os seguidores para o site da $LIBRA. O polêmico economista Milei ganhou as eleições argentinas com o sloganViva la liberdad, carajo”. Portanto, o link da empresa privada, responsável por uma moeda eletrônica, era praticamente idêntico ao seu lema de campanha, extraindo-se da postagem um evidente estímulo para os seguidores do político investirem em referido ativo virtual.

O presidente argentino sempre se destacou por uma defesa ultraliberal da economia, com ideias econômicas heterodoxas, advogando de forma entusiasmada a privatização das empresas estatais, o fim do banco central, a dolarização e principalmente a “tokenização” da economia, ampliando o mercado para as moedas virtuais e o negócio com criptoativos.

Diante deste contexto, a divulgação desta moeda eletrônica, associada as mudanças macroeconômicas anunciadas no país, serviu como indiscutível chamariz para investidores. Em poucas horas após a postagem em sua rede social desta propaganda entusiasmada, mais de 40 mil seguidores compararam referido ativo financeiro e a $LIBRA faturou $ 4 bilhões de dólares.

De repente, mas não inocentemente, o valor desta moeda virtual começou a cair de forma vertiginosa, virando pó em menos de 24 horas, sendo que a maioria dos investidores que acreditaram na publicidade feita pelo presidente Milei perderam todos os recursos aportados.

Empresas sérias que comercializam moedas digitais, a exemplo da Bitcoin e da Ethereum, precursoras na negociação de ativos virtuais na rede blockchain, saíram com esclarecimentos e notas criticando esse tipo de prática que somente serve para atrapalhar as transações com criptoativos, confundindo o investidor.

A manobra utilizada pela $LIBRA é conhecida no mercado financeiro como Rug Pull “puxada de tapete”. Consiste em um golpe no qual os criadores de uma criptomoeda, projeto digital ou título eletrônico (muito comum na tokenização da economia) incentivam investidores a comprarem referido ativo, prometendo altos retornos em curto espaço de tempo, sendo que após atrair grande volume de compradores e recursos, inflando o valor do token, os seus criadores e desenvolvedores vendem rapidamente suas participações e abandonam o projeto, deixando os investidores incautos isolados e suportando um enorme prejuízo.

Os fraudadores lucram com a alta rápida e atípica e os investidores seduzidos com o ganho fácil, perdem suas economias, passam a possuir uma moeda que não tem valor.

São vários os golpes deste tipo no mercado financeiro. A novidade do caso argentino é o envolvimento de um chefe de estado como garoto propaganda de um estelionato.

Após apagar a postagem e o link que divulgava a $LIBRA, Javier Milei afirmou que também foi enganado (embora um assessor direto da Casa Rosada e dois empresários próximos ao presidente estejam entre os responsáveis pelo site) e chegou a dizer que fez a sugestão de boa-fé, avaliando um ativo financeiro enquanto economista e não como presidente da Argentina e que no livre mercado os negócios podem dar certo ou errado e que ele não garantia retorno aos investidores.

A resposta destoa completamente da mensagem escrita no X, os indícios aparentemente desmentem o presidente argentino, resultando evidente a voluntariedade em emprestar a credibilidade do governo e do estado para divulgar uma fraude, tanto que foi deflagrada uma investigação criminal na Província de Buenos Aires, além de ter sido protocolado um pedido de impeachment perante o Congresso.

A prática acima narrada no direito brasileiro seria enquadrada como estelionato, definido popularmente como “conto do vigário”, configurando uma fraude em que o golpista se apresenta com múltiplas facetas e que passou a se modernizar à medida que a sociedade foi ficando digitalizada e hiperconectada, como na atualidade.

Em razão da circulação de moedas eletrônicas e outros ativos financeiros sem uma adequada regulamentação e fiscalização, nosso país passou a debater o tema em vários órgãos competentes, a exemplo do Banco Central, Receita Federal, CVM, COAF, etc., buscando encontrar mecanismos de controlem que possibilitem reprimir eventuais golpes praticados neste novo modelo econômico virtual existente.

Nesse contexto foi aprovada a Lei nº. 14.478/2022 inserindo o art. 171-A no Código Penal (batizado de estelionato eletrônico com o uso de criptoativos), sendo tipificada como crime punido com reclusão de 04 a 08 anos, e multa, as condutas consistentes em “organizar, gerir, ofertar ou distribuir carteiras ou intermediar operações que envolvam ativos virtuais, valores mobiliários ou quaisquer ativos financeiros com o fim de obter vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento”.

Embora na Argentina não exista um tipo penal idêntico, tem-se a figura da fraude com títulos negociados no mercado e também o crime de associação criminosa. Por essas condutas deve responder o presidente que em hipótese alguma está autorizado a utilizar a credibilidade de seu cargo para fazer propaganda enganosa de uma aventura com todos os indícios de que se trata de um golpe.

Não adianta dizer que atuou de boa-fé se os vícios são evidentes e difíceis de ocultar. Em matéria de confiabilidade e respeito não basta afirmar, como no comercial dos anos 90, que a mercadoria vendida ou anunciada “No necessita la garantia. La garantia soy yo”.

É preciso investigar, processar e punir os golpistas e aproveitadores, acabando com a sensação de que fraudes virtuais e crimes praticados pela internet não são responsabilizados.