O escritor dinamarquês Hans Christian Andersen é autor de obras-primas da literatura infantil, a exemplo do Patinho Feio, A Pequena Sereia e o Soldadinho de Chumbo. Escritas como fábulas, suas histórias sempre acabam com uma moral e um ensinamento perene, tornando-as clássicas.
Um de seus contos mais emblemáticos chama-se “A Roupa Nova do Imperador”. O texto narra o comportamento de um rei vaidoso que encomendou uma vestimenta de gala a dois falsários que convenceram sua majestade de que o tecido era tão especial que somente pessoas sofisticadas poderiam vê-lo. Cuidava-se, em verdade, de uma roupa imaginária e o rei, fingindo ver a vestimenta inexistente (até para não evidenciar aos golpistas a sua ignorância e incredulidade), resolveu convocar o reino para assisti-lo desfilando (sendo aplaudido pelo povo que não ousava contrariá-lo), até que uma criança inocente gritou a verdade e apontando o dedo indicador afirmou que “o rei está nu”, momento em que todos se deram conta da farsa.
Na última semana o país acordou com as notícias da “Operação Carbono Oculto”, consistindo em uma investigação conjunta envolvendo a Polícia Federal, a Receita Federal e o Ministério Público do estado de São Paulo (GAECO), revelando o envolvimento de empresas (fintechs) situadas na Faria Lima, com o PCC – Primeiro Comando da Capital, maior organização criminosa existente no Brasil.
A Faria Lima (nome retirado da avenida Brigadeiro Faria Lima) foi alçada a condição de condado do mercado financeiro, verdadeira Meca de liberais, composta por gente que defende a ausência de regulamentação do estado, apresenta críticas às políticas sociais e advoga de maneira fervorosa em favor dos grandes conglomerados capitalistas.
Mais lucro, menos estado. Esse o lema dos tecnocratas que se orgulham de serem chamados de “Faria Limer”, epíteto usado para definir um estilo de vida que adota estética própria (forma de se vestir, de se alimentar, de consumir marcas de luxo) e uma linguagem comum (valendo-se de muitas expressões e termos corporativos em inglês).
Eis que alguns desses executivos bem trajados, críticos do estado, de aparência moderna e que adoram apoiar candidatos da extrema-direita e falar mal do próprio país, foram flagrados servindo de agentes financeiros da máfia, atuando como braço burocrata de uma das piores e mais violentas organizações criminosas (PCC), especializada em tráfico de drogas, sequestros e fraudes diversas, liderada por réus multirreincidentes como Marcola, André do Rap, Chacal e outros de comprovada periculosidade.
Os Faria Limers auxiliaram na lavagem de dinheiro para o PCC valendo-se de Fintechs – termo que resulta da combinação das palavras “finanças” (finance) e “tecnologia” (technology), empresas que utilizam inovação tecnológica para oferecer serviços financeiros virtuais por meio de aplicativos e plataformas online, disponibilizando contas digitais, pagamentos, inclusive para pessoas sediadas no exterior, atividades de câmbio (exchange) e seguros. Tudo protegido pelo sigilo bancário e fiscal.
Embora atuando no mercado financeiro, as fintechs não se submetem à mesma fiscalização dos bancos, sendo possível operar “contas-bolsão”, utilizadas no investimento de fundos, concentrando em uma única conta os depósitos de múltiplos clientes, complicando o rastreamento do dinheiro.
O sigilo de suas transações e a dificuldade de identificação da origem dos valores investidos serve como um ótimo escudo para proteger o crime organizado que sempre manteve ligações perigosas com autoridades estatais, viabilizando a lavagem de dinheiro e ocultação patrimonial. Além disso, como as fintechs embora pareçam bancos, não são tratadas como tal, também não passam pela mesma fiscalização, controle e observância de regras de compliance dos bancos tradicionais.
Tudo isso foi suficiente para que as investigações realizadas com inteligência e sem disparar um único tiro viessem a descobrir que entre o período de 2020 a 2024 referidas fintechs movimentaram 46 bilhões de reais oriundos do crime organizado.
Essa solução rápida e asséptica fornecida pela Faria Lima era tudo que as organizações criminosas necessitavam: lavar dinheiro com segurança, discrição, sigilo e ainda lucrar enquanto ocultava e dissimulava referidos valores, pois incide nos investimentos realizados os juros e a correção das aplicações.
A engenhosidade financeira defendida como modernidade em grau absoluto serviu para potencializar os ganhos do PCC ao tempo que multiplicou o estrago institucional, pois fortaleceu as organizações criminosas que devem ser combatidas pelo estado.
Desde 1995 que o Brasil luta contra o crime organizado, inicialmente editando a Lei 9.034/95, depois sendo signatário do Tratado de Palermo (Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional), posteriormente sancionando a Lei 10.217/01, desaguando, por fim, na Lei 12.850/13 que define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento a ser adotado.
Entretanto, de nada adianta a existência de normas jurídicas e o discurso que afirma empenho no combate ao crime organizado, acaso continuem existindo lacunas que possibilitem instituições financeiras serem utilizadas como instrumentos pelas organizações criminosas. O estado – tão combatido pela Faria Lima – estará sempre em desvantagem e nunca conseguirá atingir seu intento de possibilitar segurança pública para toda a população.
Impossível enfrentar o crime organizado com instituições desorganizadas, desacreditadas e sem armas de inteligência aptas a neutralizarem esse tipo sofisticado de delinqüência.
Espera-se que as recentes descobertas, além de contribuírem para a atualização legislativa, sirvam para desnudar esse falso discurso de que o estado atrapalha o desenvolvimento, que a regulamentação só atravanca negócios inteligentes e que as modernas tecnologias estão possibilitando ganhos financeiros inauditos em fundos de investimentos conduzidos por gênios que se comunicam em inglês e usam pullover.
A moral da história em “A Roupa Nova do Rei” é que a vaidade, a soberba e a mentira podem levar à ingenuidade e ao engano e que a verdade é arrebatadora e às vezes exige coragem para afastar o medo das pessoas em serem consideradas estúpidas, levando-as a concordar com falsidades para evitar o ridículo.
Eis o ponto: para ser moderno, evoluído e avançado não precisa viver criticando o Brasil, falando em inglês e cultuando o capitalismo como religião. Não e renão. Acreditar no trabalho, valorizar o trabalhador, criticar as injustiças, defender as instituições e as boas práticas do estado, além não possuir alianças com o crime organizado, já é um ótimo começo.