ARACAJU/SE, 2 de abril de 2025 , 0:45:59

O Supremo e o Soberano

O tribunal do júri possuí origem imemorial, atribuindo alguns estudiosos a sua existência na Lei Mosaica, no Aerópago Grego e nos Judices romanos. A forma de concepção que mais se assemelha ao seu estágio atual nasce na Inglaterra (trial by jury), objetivando combater o procedimento inquisitorial, estabelecendo-se um rito processual que possibilita o contraditório e a ampla defesa, com participação das partes em um debate público e direto (cross examination), permitindo que o cidadão tenha papel decisivo nas sentenças (veredictos), espalhando-se nos países da common law.

No Brasil o tribunal do júri foi instituído por Decreto datado de 18 de junho de 1822, inicialmente para o julgamento dos crimes de imprensa, figurando nos textos constitucionais desde a primeira constituição republicana de 1891, ganhando especial destaque com a promulgação da Constituição Federal de 1988 que estabelece sua competência para julgar os crimes dolosos contra a vida, devendo-se respeitar a soberania dos veredictos (art. 5º, XXXVIII, “c”, CF).

Cuida-se de garantia fundamental, alçada à condição de cláusula pétrea (art. 60, §4º, IV, da CF), permitindo que o cidadão seja convocado para participar diretamente das decisões judiciais. Seguindo a determinação expressa do texto constitucional, não seria exagero afirmar que o entendimento e vontade de um servidor público, de um bancário, empresário, profissional liberal, taxista, dona de casa, etc., convocados e sorteados para integrarem o conselho de sentença, tem mais valor que a decisão de um juiz de direito, de um tribunal ou mesmo de uma corte superior.

Faz-se essa constatação com amparo na impossibilidade de alteração pelo Poder Judiciário das decisões do júri, devendo-se respeitar os veredictos dos jurados (pessoas comuns do povo regularmente recrutadas para compor o conselho de sentença), prevendo-se apenas em situações excepcionalíssimas a possibilidade de anulação da sessão para determinar a realização de novo julgamento pelo plenário do júri, não cabendo um segundo recurso pelo mesmo fundamento.

O entendimento dos moradores daquela comarca longínqua decidindo o caso concreto deve ser mantido e respeitado pelo Poder Judiciário. Referida imposição constitucional (assegurando especial destaque à vontade popular), faz com que os julgamentos realizados pelo júri sofram severas críticas, contando com má vontade de parte significativa do judiciário que não tolera a convivência com a ideia democrática de um julgamento oriundo do povo, soberano e sem participação e/ou interferência de juízes togados, sustentando que referida decisão não é justa, sábia e merecedora de respeito.

Ledo engano. Justiça não tem qualquer correlação com conhecimento jurídico e erudição. Dar a cada um o que é seu pode ser atribuição do homem comum do povo que muitas vezes chega a uma conclusão mais equilibrada e sensata que o próprio Poder Judiciário.

Espantoso constatar que parte desses sistemáticos ataques sofridos pelo tribunal do júri têm origem no Supremo Tribunal Federal, justamente a instituição que deveria defendê-lo. O guardião da Constituição não tem qualquer cerimônia em minimizar o texto constitucional, menosprezando-o para, de forma engenhosa, usar a soberania dos veredictos ao sabor de suas interpretações mais criativas.

Como não é possível em uma “canetada” acabar definitivamente com o júri, impedindo que o povo participe diretamente dos julgamentos, ultimamente a Suprema Corte tem se empenhado com êxito na tarefa de emascular a soberania dos veredictos. O Supremo não respeita o Soberano (que neste caso é o povo representado pela figura dos jurados).

Interessante analisar como o STF utiliza o argumento de defesa da soberania dos veredictos para justificar decisões não previstas na lei, tentando legitimar o decisionismo, imiscuindo-se no papel do legislador.

Ao fixar o Tema 1068, o STF demonstrou uma aparente preocupação em proteger a soberania dos veredictos, afirmando existir autorização (mesmo sem qualquer previsão constitucional apta a flexibilizar a presunção de inocência – art. 5º, LVII, CF) para a imediata execução da pena do condenado pelo júri, independentemente do quantitativo fixado. Ou seja: concluído o julgamento, acaso seja o réu condenado, deve o juiz proferir a sentença e ato contínuo determinar a prisão do réu, mesmo que se apresente como desnecessária, ainda que possível a interposição de recursos e presente plausibilidade jurídica nos argumentos do condenado.

Posteriormente, valendo-se da mesma ideia de soberania dos veredictos, o STF ao julgar o ARE nº. 1.225.184, afirma a possibilidade de interposição de recurso pela acusação e a consequente nulidade do julgamento, quando o jurado absolve o réu por clemência, piedade, compaixão ou qualquer outro motivo, respondendo ao quesito “o jurado absolve o acusado?”, previso no art. 483, III, CPP.

Importante destacar que o jurado decide com base em sua íntima convicção, não precisando motivar a decisão, respondendo apenas sim ou não a referido quesito, sendo certo que acaso o júri resolva perdoar ou dar clemência ao réu ele tem essa faculdade e a decisão deve ser considerada soberana.

Eis que o STF, inconformado com tanto poder nas mãos do povo, exercido por gente que não usa toga e não conhece a terminologia jurídica, passou a flexibilizar a vontade da lei e o que determina a Constituição Federal, aplicando duros golpes na decisão popular.

Usa-se uma pretensa defesa da soberania dos veredictos para prender o réu condenado após a leitura da sentença em plenário, independentemente da pena e, curiosamente, não se reconhece a mesma soberania quando o júri absolve o réu por motivo de clemência ou piedade, dando a entender que o respeito à soberania somente deve existir se for contrário aos interesses do réu e contemple o que os juízes togados consideram correto. Criou-se no Brasil a figura do júri soberano, “pero non mucho” ou soberano se condenar e nunca se absolver o acusado.

Cuida-se de situação completamente equivocada, capaz de evidenciar todo o autoritarismo do Poder Judiciário, sempre disposto a não respeitar a vontade popular, voltando às costas para o cidadão, criando obstáculos para dificultar ou não reconhecer a soberania dos veredictos.

As últimas decisões do STF apontam para um combate sistemático à instituição do tribunal do júri, demonstrando pouco ou nenhum apreço à possibilidade de participação direta do cidadão na justiça. Lamentável.

O júri no Brasil precisa ser aperfeiçoado e não extirpado, o povo deveria participar de mais julgamentos, integrar e entender o funcionamento do judiciário, atuar mais proximamente deste poder que não é afeito ao desenvolvimento pleno da cidadania. É necessário defender mais soberania e menos Supremo.

Vida longa ao Tribunal do Júri.