ARACAJU/SE, 6 de julho de 2025 , 3:16:01

O tiro que não saiu

Zé Priquito de Tonho Rabichola amanheceu nos azeites. Mal abriu os olhos ainda grudados por uma librina sem-vergonha, embora dormido pouco tivesse, saltou da cama disposto a matar João das Véias, primo e compadre. Ninguém em sã consciência jamais poderia imaginar que ele pudesse cometer um ato de violência contra quem quer que fosse. Como se diz no vulgo, Zé Priquito era incapaz de matar uma mosca. Sujeito maneiro, pacífico, cordato em quase tudo nessa vida. Então, matar o primo e compadre, não fazia o menor sentido.

A vida, por vezes, traz momentos inesperados. Quando bem não se espera, eis que alguém comete um desatino nunca sonhado por ninguém. São as circunstâncias da vida que derrubam um sujeito, no exato momento em que a tentação do demo se atrepa em sua cacunda, empurrando-o para as profundas do inferno.

Não abriu a boca para falar com a mulher, nem na hora do café, cercado pelos cinco filhos, todos de cobrir com um cesto, pequeninos, numa escadinha amorenada. “Que é que tu tem, Zé”? Não adiantou perguntar. Ele deu calado por resposta. Depois de comer, foi ao quarto, abriu o camiseiro, pegou um objeto, no escuro, e saiu. Pôs o chapéu na cabeça, endireitou a cintura, no quarto direito e aboletou-se.

A cabeça de Zé fervilhava desde o fim da tarde anterior. Pouco dormiu. Sem que a mulher percebesse, pois tem o sono profundo, ele mal madornou. Pensamento fixo no acontecimento daquele dia. “O próprio sangue da gente é que bota tudo a perder”, pensou. Pela manhã, haveria de tirar a limpo aquela conversa sem pé nem cabeça. Foi Mamede de Dona Finha quem lhe passou a língua, debulhando tim-tim por tim-tim. O sangue ferveu. Sentiu as veias do pescoço incharem. O gosto de sangue veio à boca. Logo ele, João das Véias, um primo-irmão, e, ainda por cima, compadre, padrinho de Tuquinha, seu caçula.

Mamede discorreu sobre a falação do primo João. Gostar de falar besteira, o primo e compadre gostava, sim. E muito. Porém, dizer – dizer, não, inventar – uma cachorrada daquela? Donde já se viu? Inventar que ele, Zé Priquito, um abençoado que nunca fez mal a ninguém, que nunca pegou no que é alheio, que nunca matou, roubou ou deflorou, fez uma barbaridade daquela? E sair por aí, espalhando uma mentira deslavada? Com qual intento? Como ele pôde assuntar uma desgraça daquela? Por maldade? Logo com ele, seu primo e compadre de grande consideração e amizade sem afrouxamentos.

A noite foi longa. Zé ouviu os galos cantarem, recantarem e trecantarem. Até o galo fonhem de Sá Margarida do finado Pulo de Sapo deu para aumentar o tom do canto, como se quisesse lhe dizer: “Sei de tudo”! Sabia não. Nem o galo fonhem, nem o primo e compadre, nem fio de gota nenhum sabia de nada a seu respeito, que lhe pudesse botar em desabusado desassossego. Não era homem para uma malvadeza daquela, um desatino que somente um cara desalmado poderia cometer.

Amanheceu e ele não teve palavra para a mulher ou os filhos. Não caducou com o pequenino, afilhado do primo. Não sacolejou as bochechas de Mariinha, a dos olhos de esmeralda, como a avó paterna, Dona Cristina. Estava virado nas seiscentas. No camiseiro ele pegou foi a arma, que ali dormitava fazia tempo. No caminho, para não espantar os de casa, veria o estado da arma e das balas. Devia estar tudo em ordem, pois há poucos meses Pedro armeiro dera conta de fazer boa limpeza e calibragem.

Cabeça em parafuso, o que foi mesmo que Mamede lhe dissera? Estava confuso. Estaria ficando louco? Aquela notícia sobre a falação descarada do primo e compadre estaria lhe agoniando o quengo. Um grito, voz de mulher, arrancou-o do estado de revoltosa ebulição.

Zé Priquito de Tonho Rabichola e Dona Cristina, seus pais, marido de Angelina e pai de cinco filhos de cobrir com um cesto, primo e compadre de João das Véias, homem de sua família e de seus afazeres, teve uma noite de pesadelo. Uma coisa horrorosa. Acordou, ainda atordoado, com o chamado da mulher: “Zé, ô Zé, acorda homem! Tu num vai tirar o leite”? Ele tinha perdido a hora. A vaca Mimosa já devia ter dado fé de sua ausência.