ARACAJU/SE, 10 de setembro de 2025 , 16:23:06

Os Superjuristas

Quando alguém fala em “superjurista”, a associação instantânea é com Tobias Barreto, Clóvis Bevilácqua, Rui Barbosa, Pedro Lessa, Sobral Pinto, Miguel Reale, Pontes de Miranda, Evandro Lins e Silva, Moreira Alves e titãs dessa estatura. Mas essa concepção está em metamorfose.

Em 28 de agosto de 2025, durante o Congresso Brasileiro de Direito, promovido pela Faculdade 8 de Julho, no Teatro Tobias Barreto, em Aracaju, o juiz federal e doutor em Filosofia do Direito pela Universidade de Coimbra, George Marmelstein, apresentou suas perspectivas sobre o futuro da profissão.

Partiu da constatação de que a linguagem escrita, invenção de cerca de seis mil anos, é a principal ferramenta cognitiva. Dela vieram extensões do pensamento como bibliotecas, computadores, “smartphones”. Para ele, isso são “próteses cognitivas”, que ampliam nossa capacidade de pensar e produzir conhecimento.

Afirmou que a inteligência artificial generativa é a mais recente prótese, capaz de transformar o Direito. Vivemos, segundo ele, “a era dos superjuristas”: profissionais que unem conhecimento jurídico sólido e tecnologias, que usam como “asas para o pensamento” e não como “muletas”.

Acrescentou que, quando o ChatGPT surgiu em 2023, parecia um brinquedo para preguiçosos, limitado e pouco confiável pelas “alucinações”. Hoje, os sistemas evoluíram: analisam centenas de páginas, fazem pesquisas profundas e relatórios sofisticados. O passo mais recente, o “Deep Research”, é visto como virada silenciosa: não mais estagiário virtual, mas equipe de especialistas digitais.

O juiz dividiu o mundo jurídico em três grupos: os que não usam IA, os que a usam como substituto do pensar e os que a utilizam estrategicamente. Apenas estes últimos encarnam o perfil do superjurista.

Provocou ao dizer que talvez seja até antiético não usar IA para melhorar a qualidade da produção jurídica. Ao mesmo tempo, destacou que ela eleva o nível de exigência: textos medianos, antes tolerados, deixarão de ser aceitáveis.

Marmelstein advertiu, porém, para riscos técnicos e éticos: inconsistências, limites de confiabilidade e o fato de máquinas não poderem assumir juízo de valor.

Exato. O entusiasmo precisa de contenção: nem todo avanço é progresso. A afirmação de que seria “antiético” não usar IA deve ser lida com cautela, pois em certos contextos a simplicidade do método tradicional preserva clareza e segurança.

Pode-se acrescentar uma metáfora ao que ele disse. No filme de Stanley Kubrick, baseado no roteiro de Arthur C. Clarke, “2001: Uma Odisseia no Espaço”, a tripulação de uma nave espacial dependia da IA “HAL 9000”. Todavia, não podia renunciar ao juízo crítico, sem correr perigo. O desafio jurídico é usar tecnologia como asa do pensamento sem perder a soberania do julgamento humano. A tentação de transformar a IA em oráculo é semelhante à confiança excessiva que os astronautas tiveram em HAL, com consequências dramáticas. No Direito, o risco é abdicar do senso crítico e reduzir a prática a apertar botões.

Isso evidencia que, embora máquinas processem informação em escala sobre-humana, a decisão final é ato de responsabilidade ética. No Direito, traduz-se em manter autonomia interpretativa diante de textos, provas e valores. A IA pode sugerir caminhos, organizar argumentos e antecipar probabilidades, mas não deve substituir a ponderação humana.

Há mais. A transformação enfrenta obstáculos além da técnica. O primeiro é o acesso: grandes escritórios, empresas e órgãos públicos robustos terão os modelos mais avançados, enquanto advogados populares, defensorias e pequenas bancas enfrentarão barreiras. Sem políticas de democratização, o fosso no sistema de justiça pode se aprofundar.

Outro ponto é a confidencialidade. O Direito lida com documentos sensíveis e segredos profissionais. Usar IA sem protocolos de segurança expõe dados a riscos inaceitáveis. A confiança do jurisdicionado depende não só do uso, mas da proteção rigorosa das informações.

A “alfabetização digital” deve ir além do aprendizado técnico: é preciso compreensão de vieses, limitações e dinâmicas de poder. Sem isso, o risco é reproduzir preconceitos e desigualdades.

Nesse cenário, a incorporação da IA exige mudança cultural. Profissionais jurídicos precisarão rever como estudam, pesquisam e produzem conhecimento, de modo a agir com postura crítica: confiar cegamente nos sistemas leva a erros, rejeitá-los por preconceito é perder oportunidades.

Em primeiro lugar, uma reforma curricular que incorpore o estudo da IA ao lado das disciplinas dogmáticas é necessária. Não se trata de formar programadores, mas de oferecer noções básicas de funcionamento, limites e vieses. A formação tradicional, baseada em memorização e reprodução de doutrinas e jurisprudências, não basta. O profissional do futuro deve dominar curadoria, pensamento estratégico, escrita refinada e ética.

Em segundo lugar, instituições públicas devem adotar políticas claras de uso da IA, com protocolos de segurança, confiabilidade e diretrizes éticas para evitar abusos. Essas políticas precisam considerar a democratização do acesso, para evitar que a tecnologia se torne privilégio.

O terceiro passo é cultural: escritórios, professores, agentes públicos (inclusive magistrados) devem abandonar o receio de “serem pegos usando IA” e valorizar a transparência. Devem assumir o uso, indicar como e responsabilizar-se pelos resultados. Isso exige treinamento contínuo e mudança de mentalidade.

Por fim, é indispensável o debate regulatório. A revolução tecnológica não pode ser guiada apenas pelo acaso. Cabe ao legislador e às instituições acadêmicas discutir limites, responsabilidades e proteção de direitos fundamentais, para que o uso da IA amplie a justiça, e não concentre poder.

De volta a Marmelstein. A palestra terminou com visão de futuro: o direito será moldado pela colaboração entre humanos e máquinas. O desafio é garantir que juristas usem a IA não para substituir, mas para potencializar reflexão crítica, clareza metodológica e responsabilidade ética.

De fato. O caminho do que ele chamou de “superjurista” não é uma corrida cega. O desafio é construir um ecossistema jurídico em que a IA seja instrumento de ampliação cognitiva, não de alienação. Assim como a escrita, a imprensa e o computador mudaram a prática do Direito, a IA também mudará. Os profissionais decidirão se a mudança será emancipadora ou regressiva, para enfrentar não só possibilidades, mas também contradições, riscos e desigualdades.