Apesar de se falar muito em polarização da política brasileira hoje, ela é um fenômeno tão antigo quanto o próprio país. E, tanto quanto atualmente, as forças contraditórias eram levadas a produzir normas jurídicas em regime de compromisso, acomodando teses de ambos os lados contendores.
Se agora há bolsonaristas e petistas, ontem houve tucanos e petistas e anteontem emedebistas e arenistas. Antes dos confrontos entre udenistas, pessedistas e petebistas, e mesmo antes dos partidos republicanos estaduais, houve uma espécie de pré-história dos partidos políticos brasileiros, uma era que antecedeu todos esses movimentos.
Durante esse período, os “partidos políticos”, ainda não formalizados como pessoas jurídicas e sem disciplina legal expressa, eram essencialmente grupos de indivíduos com ideias semelhantes. Apesar de sua natureza informal, organizados em torno de interesses comuns, eles já exibiam características de polarização.
A própria Independência do Brasil, em 1822, marco zero da história soberana nacional, foi um evento afetado pela intensa divisão política.
Durante as primeiras décadas do século XIX, o Brasil experimentou transformações que desencadearam debates intensos. A presença da Corte Portuguesa no Brasil e as influências das revoluções liberais europeias, em especial a Revolução do Porto (1820), instigaram um clima de mudança, afetando o desenho institucional do então Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves.
Convocadas eleições gerais para a Constituinte do Reino Unido, reuniram-se correntes de pensamento e ação. Formou-se uma linha designada “Partido Brasileiro”, que não era independentista inicialmente, mas tinha diretrizes liberais clássicas. Havia, também, os “Liberais Radicais”. Eles defendiam a independência total de Portugal e ideais republicanos. Suas pautas propunham mudanças jurídicas significativas, incluindo a adoção de uma constituição republicana.
Como uma espécie de centro, estavam os “Liberais Moderados”, que buscavam uma transição estável sob a liderança de Dom Pedro I (1798-1834), o que também implicava em um desenvolvimento jurídico à base de monarquia e autonomia nacional.
Por fim, existiam os Conservadores Tradicionalistas, os “Portugueses”, que resistiam à Independência. Seu conservadorismo político refletia uma visão que priorizava a manutenção das leis e estruturas coloniais.
Em paralelo às movimentações em Portugal, o processo que resultou na Independência se acelerou e se impôs. No Brasil que nasceu, a polarização teve um papel crucial na formação do direito, a partir de seu diploma essencial: a Constituição.
A Constituição de 1824 é um exemplo de como as tensões do período influenciaram o desenvolvimento do direito brasileiro. Essa Constituição refletiu um ajuste entre as concepções monarquistas/conservadoras e liberais. As opiniões das facções que preexistiam à Independência se transportaram para dentro dela.
É certo que a Constituinte de 1823 foi dissolvida por D. Pedro I, que outorgou, no ano seguinte, um documento preparado por dez políticos, por ele escolhidos. Mas esse texto, além de aproveitar em extensa parte o trabalho da Constituinte, foi calcado também nas ideias da Constituição Espanhola de 1812, na Francesa de 1814 e na Portuguesa de 1822, compatibilizando diferentes visões políticas.
Os monarquistas/conservadores tiveram suas vitórias. A Constituição não apenas adotou o regime monárquico, como também fortaleceu a figura do monarca, Dom Pedro I. Além de sacralizá-la e afastá-la de qualquer responsabilidade (artigo 99), conferiu-lhe amplos poderes. O mais notável era o chamado “Poder Moderador” (artigo 98), que era exclusivo do Imperador e lhe permitia intervir em diferentes esferas do governo, como a dissolução da Câmara dos Deputados (artigo 101), a nomeação e demissão de ministros (artigo 102), entre outros.
Ao mesmo tempo, a Constituição de 1824 incorporou vários princípios liberais, como a separação de poderes (artigo 15), estabelecendo o Executivo, o Legislativo e o Judiciário como ramos independentes do Estado. Incluía também garantias de direitos individuais, como liberdade de expressão e religião (artigo 179), e a instituição de um legislativo eleito, ainda que com grandes restrições quanto ao direito ao voto (artigo 92). Possuía, ainda, tênues sinalizações a aquilo que no futuro viria a se chamar de “direitos sociais”, como a garantia de socorros públicos e instrução primária e gratuita a todos os cidadãos (artigo 179, incisos XXXII e XXXIII). Continha até uma disposição que assinalava que “as cadeias serão seguras, limpas e bem arejadas, havendo diversas casas para separação dos réus, conforme suas circunstâncias e natureza dos seus crimes (artigo 179, inciso XXI).
Essa Constituição, embora outorgada, expressava um compromisso entre as diferentes facções ideológicas. Enquanto os liberais queriam limitar o poder do monarca e promover maior participação popular, os conservadores buscavam preservar o poder e a estabilidade da monarquia. O resultado foi um documento que tentava equilibrar essas visões, refletindo as complexas dinâmicas do Brasil recém-independente.
Essa mistura de conceitos monarquistas/conservadores e liberais na Constituição de 1824 exemplifica como as dissensões da época se traduziram em termos legais e constitucionais. Ela estabeleceu a base sobre a qual o Brasil começou a construir seu sistema jurídico e político como nação independente. Um modelo conciliatório que vai deixar suas marcas em todas as constituições seguintes, até a de 1988, irradiando efeitos por todos os ramos do direito nacional. Esse diploma, abalizava, também, a tendência do direito pátrio a chancelar a exploração, o esquecimento e a invisibilidade dos pobres, já que validava o regime de escravidão.
Num país vasto e diverso como o Brasil, com sua estrutura federal e variada composição social, é natural que haja confrontos entre diferentes visões de mundo. Essas altercações levam a divisões ideológicas marcantes. Contudo, desde que haja um compromisso com a manutenção do sistema democrático e a preservação das liberdades fundamentais, a polarização, embora possa chocar alguns e às vezes seja usada para justificar restrições questionáveis no debate público, representa apenas a mais recente manifestação de uma longa história de desacordos políticos e sociais. Essa disputa, que é tanto antiga quanto constantemente renovada, raramente encontra uma resolução completa ou satisfatória.