“Dizem que ela existe pra ajudar; Dizem que ela existe pra proteger; Eu sei que ela pode te parar; Eu sei que ela pode te prender; Polícia para quem precisa; Polícia para quem precisa de polícia”.
Em 1986 no icônico disco “Cabeça Dinossauro” a banda Titãs lançava a música “Polícia”, fazendo uma crítica mordaz ao abuso de autoridade e ao fato de que o cidadão muitas vezes tem medo de ser abordado por policiais, em razão dos métodos truculentos. Vivíamos o início da abertura política que foi efetivamente consolidada com a Constituição Federal de 1988.
Nossa Carta Constitucional estabelece no art. 144 que a segurança pública é um dever do Estado e um direito de todos, estando voltada para preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, exercida por diversos órgãos, dentre eles as polícias militares.
Indiscutivelmente são inúmeros os exemplos dos bons serviços prestados pelas instituições policiais à sociedade. Entretanto, infelizmente, também existe um histórico de abusos que maculam as corporações e exigem mudanças imediatas das rotas, sob pena de se instalar um clima de terror que contribuirá para a implementação de uma verdadeira necropolítica policial.
Em apenas 15 dias no estado de São Paulo, um homem jovem, negro, trabalhador e sem antecedentes criminais, periférico e completamente rendido foi atirado de uma ponte em um córrego na zona sul da capital, o policial agiu com enorme naturalidade, como se estivesse seguindo um protocolo normal ou jogando um saco de lixo fora; outro jovem, também negro e em total desespero recebeu 11 tiros pelas costas, após furtar três pacotes de sabão avaliados em R$ 18,00 reais; um estudante de medicina, filho de médicos peruanos, sozinho e desarmado é morto à queima-roupa; uma idosa é agredida com cacetetes na cabeça e sangrando pergunta aos policiais militares, com idade de serem seus netos, o porquê daquela abordagem agressiva; familiares e amigos são intimidados no velório e no enterro de uma criança de 4 anos, morta com um tiro disparado de uma arma de um PM, quando brincava na porta de casa.
Esses fatos estarrecedores, amplamente divulgados nas redes sociais e em toda a imprensa, inclusive internacional, aconteceram após o governador do estado de São Paulo ter afirmado não enxergar efetividade no uso de câmeras corporais e, dizer que as comissões de direitos humanos poderiam reclamar na ONU, na Liga da Justiça ou no “raio que o parta”. Esse discurso de vale tudo é encorajador das práticas cruéis.
Acossado pela opinião pública, o governador viu-se forçado a mudar de posicionamento, admitindo que estava errado e afirmando que vai implementar o uso de câmeras corporais em toda a polícia militar.
Nos últimos anos as sucessivas denúncias de graves violações aos direitos humanos em razão da prática de diversos abusos de autoridade, aliadas ao aumento da letalidade policial, associados aos discursos políticos irresponsáveis de “mirar na cabecinha”, enaltecendo os “policiais guerreiros”, geralmente os mais envolvidos em operações letais, reforçando a cultura do “bandido bom é bandido morto”, criaram uma verdadeira necropolítica policial no Brasil.
O filósofo e historiador camaronês Achile Mbembe desenvolveu o conceito de necropolítica, consistindo no poder de ditar quem deve viver e quem deve morrer, valendo-se da estrutura do estado com o objetivo de provocar a distribuição de alguns grupos com autorização para matar, banalizando a violência, criando a figura do inimigo a ser abatido e a concepção de que existem pessoas que são “mortos-vivos”.
Com uma postura absolutamente reprovável e atentatória a dignidade humana a polícia militar de São Paulo, muito por conta do respaldo político recebido de seus superiores, tem implantado a necropolítica em suas ações, valendo-se da alegação acerca do necessário combate à criminalidade e defesa da sociedade.
Não se desconhece a complexidade da atuação do policial, os riscos diários a que são submetidos os profissionais de segurança pública, a dificuldade de atuar em um estado ineficiente e desorganizado para enfrentar o crime organizado. Tudo isso é verdade. Todavia, ao representante do estado e ao agente da lei não é dado o poder do baraço e do cutelo, o direito de escolher quem deve viver ou morrer e muito menos a complacência para que venha fazer justiça com as próprias mãos.
Essa leniência no combate aos excessos policiais cultiva uma política de corpos empilhados, deixando o país preso no cativeiro da necropolítica que vitima quase sempre jovens negros e pobres. O uso excessivo da força, a exaltação de policiais que têm inúmeros casos de homicídios em suas ocorrências como heróis, o culto a violência, ao abuso e ao arbítrio são capazes de produzirem um mostro.
O resultado nos foi apresentado nos últimos dias. Pessoas inocentes (e ainda que fossem culpadas, deve-se lembrar que não existe no Brasil as penas de morte, corporais e cruéis) sendo assassinadas, agredidas e torturadas. E tais fatos somente vieram a público graças aos celulares nas mãos dos cidadãos que filmaram e divulgaram as bárbaras “abordagens”.
É preciso urgentemente aprovar uma legislação que obrigue os agentes de segurança em atividades externas e ostensivas a utilizarem câmeras corporais (body-worn cameras). Referida medida possibilita que, além do registro de todas as operações em que venha a ser empregado o uso da força excessiva (extrapolando os limites do necessário) ou o uso da força abusiva (sem qualquer justificativa fática ou respaldo protocolar), constitua relevante meio de prova processual que também protege e defende os bons policiais (imensa maioria) que fazem abordagens corretas.
Existem pesquisas sérias apontando os efeitos positivos no uso das câmeras corporais pela PM, merecendo destaque a realizada pelo Núcleo de Estudos da Violência (NEV/USP) que monitorou os batalhões que implantaram referido artefato tecnológico e constatou que nos anos de 2021/2022 a letalidade policial foi reduzida em 63,7% das ocorrências.
Nesse sentido é que foram apresentados projetos de lei na câmara dos deputados, buscando regulamentar a matéria, sendo o mais avançado o PL nº. 3295/2024 de autoria da deputada federal Érika Kokay (PT-DF). Enquanto não é aprovada uma legislação válida e com abrangência em todo território nacional (particularmente entendo que essa obrigação normativa não fere a autonomia administrativa dos estados), o Ministério da Justiça editou a Portaria nº. 648/24 estabelecendo diretrizes sobre o uso de câmeras corporais pelos órgãos de segurança pública, disponibilizando recursos financeiros, inclusive, para os estados que aderirem a referido programa.
Essa mudança é para ontem. Não podemos mais banalizar o mal e sermos lenientes com a necropolítica policial. Deve-se combater o arbítrio com medidas efetivas. O uso da força policial deve ser progressivo, proporcional e excepcional para os casos em que comprovadamente se justificam. Não pode ser vulgarizado, disseminado e aplaudido.
Quem sabe no futuro não possamos lembrar da música dos Titãs como um tempo superado, triste e que não deixou saudades, pois a polícia passou a existir somente para proteger. Devemos ficar atentos e fortes, lutar pelas mudanças e sonhar com o futuro, repudiando o abuso policial.