ARACAJU/SE, 24 de novembro de 2024 , 2:01:18

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Por amor à causa

A formação do território nacional parece ser vista como um objeto acabado. Como um produto que foi comprado na prateleira. O profissional do direito muitas vezes nem sabe como divisas do estado em que vive se formaram e como as fronteiras nacionais foram estabelecidas. A história a seguir tem a ver com isso. 

O Acre é um estado que só existe por causa da ação de guerrilheiros. Figuras como Luiz Galvez Rodrigues de Arias (1864-1935), um espanhol, têm destacada importância nisso. Ele liderou uma rebelião tentando formar uma república naquele local, que já era repleto de brasileiros. Também avulta o personagem de José Plácido de Castro (1873-1908), gaúcho que também esteve vinculado a essa breve república e à Revolução Acreana. Comandou seringueiros e venceu confrontos com os estrangeiros. As batalhas desses e outros homens findariam por manter sob ocupação de brasileiros o chão que era litigado com a Bolívia.

Essa peleja internacional só encontrou fim em 1903, quando o Barão do Rio Branco (1845-1912) negociou a solução, na companhia de uma equipe de notáveis, com delegados bolivianos. Veio daí o Tratado de Petrópolis, que, mediante transações recíprocas, absorveu o Acre ao Brasil, como território federal. Nesse pacto, resolveu-se a cruenta disputa que fazia guerrear naquela região brasileiros que migraram para lá. Boa parte deles era de cearenses que fugiram do flagelo da seca de 1877-79. Eles viram na extração do látex das seringueiras uma chance de sobrevivência e refregaram com os bolivianos que afirmavam que aquele chão era deles. Brasileiros abandonados pelo governo federal e bolivianos que se aproveitaram da inércia dos primeiros mandatários republicanos para se apossar daquilo que era pertencente ao Brasil.

O baiano Rui Barbosa (1849-1923) havia participado da delegação encarregada de negociar com a Bolívia. No entanto, demitira-se antes da assinatura do acordo, por discordar dos termos da indenização proposta pelo Brasil. Para ele, não seria o caso de solução diplomática bilateral, mas de se exigir uma arbitragem, já que reputava que o Brasil teria direito ao território disputado. Se não a arbitragem, a guerra. Mas nada deveria ser pago.

Pouco depois, Rui foi escolhido para defender o direito do Estado do Amazonas sobre parte das terras acreanas. O litígio foi travado com a União. Em 4 de dezembro de 1905, perante o Supremo Tribunal Federal, na Ação Civil Originária nº 9, ele reivindicou a anexação ao Amazonas do chamado “Acre Setentrional”, área acima do paralelo 10º20’. Argumentou “posse imemorial e domínio antigo”.

A batalha judicial não se limitou ao lado de Rui. Defendeu a União, nesse processo, o Procurador-Geral da República, o sergipano Pedro Antônio de Oliveira Ribeiro (1851-1917). Naquele tempo, o PGR era um ministro da Suprema Corte designado para a função, acumulando também o encargo de ser o defensor da União perante o próprio STF.

É aqui que entra o sergipano Gumercindo Bessa (1859-1913). O deputado federal Fausto Cardoso (1864-1906) convidou o seu conterrâneo e contemporâneo da Faculdade de Direito do Recife para juntar-se aos defensores da ideia de os acreanos não serem incorporados ao Amazonas. Informou que conseguiu arrecadar, com outros amigos da causa, oito contos de réis para remunerá-lo. Bessa, que não era um homem rico, respondeu, por telegrama: “Recuso dinheiro. Irei [por] minha conta.”.

Bessa saiu em defesa do Acre, publicando, em Sergipe, o “Memorial em Prol dos Acreanos Ameaçados de Confisco pelo Estado do Amazonas na Ação de Reivindicação do Território do Acre”, em 31 de janeiro de 1906. O texto tinha 20 páginas e foi, pouco depois, republicado na Capital Federal.

Rui não se fez de rogado e contestou os argumentos de Bessa nas páginas do Jornal do Comércio. Bessa, imbuído do papel de defensor dos acreanos, retrucou, no mesmo periódico, com oito artigos, todos contestados pelo gigante baiano, entre 18 de junho e 2 de julho de 1906.

Cabe aqui uma observação. A atuação de Bessa estava inspirada pela visão filosófica da Escola do Recife, que, além de reduzir relevo ao direito natural, também punha sob crítica o próprio direito positivo. É dizer, estava além do argumento jurídico-formalista. Talvez aí esteja uma grande página da história jurídica nacional, na confrontação de duas cosmovisões em conflito.

Bessa se envolveu na defesa dos acreanos argumentando que eles deveriam ter o direito de decidir seu próprio destino, em vez de serem objeto de disputa entre a União e o Amazonas. Sua defesa era baseada na convicção de que o Acre, sendo uma região economicamente próspera devido à produção de borracha, deveria ser governado por aqueles que realmente viviam e trabalhavam na terra. Esta abordagem humanista, que inflama de política e sociologia a discussão, contrastava com a visão mais jurídica e territorial de Rui Barbosa e de Oliveira Ribeiro.

O debate ganhou grandes proporções. A opinião pública, informada das razões de ambos os lados, estava dividida. À petição inicial, somaram-se outras peças jurídicas (contestação, réplica, tréplica, razões finais), mas o processo nunca chegou a termo. As tentativas de acordo foram infrutíferas e os autos ficaram adormecidos no STF, até que se extraviaram, nos anos 50. Ernesto Leme (1896-1986), prefaciador da obra de Rui Barbosa sobre esse caso, afirma que foi em busca dos documentos, sem sucesso.

A altercação encontrou um caminho de solução apenas na década de 1930. Devido à complexidade e à importância econômica e política da contenda, a questão foi alçada à dimensão constitucional. No artigo 5º das Disposições Transitórias da Constituição de 1934, ficou estabelecido que caberia à União indenizar o Estado do Amazonas pelos prejuízos advindos da incorporação do Acre ao território nacional. O dispositivo determinava que o valor fixado por árbitros, considerando os benefícios do convênio e as indenizações pagas à Bolívia, seria aplicado sob a orientação do Governo Federal, em proveito do Estado do Amazonas. Com isso, os constituintes pretendiam encerrar a questão, reconhecendo que o contencioso sobre as fronteiras e divisas na região era um desdobramento das decisões tomadas pelo Governo Federal ao assinar o Tratado de Petrópolis. 

Todos os lados cantaram vitória. Os amazonenses reputam que o reconhecimento do direito a uma indenização é a demonstração de que o Acre deveria ser dele. A União deu-se por vencedora porque ficou com o território federal (e seus bônus econômicos) até criar o Estado, em 1962. Os acreanos consideraram-se, então, vencedores. Esse processo todo envolveu tanto a força, quanto o direito.

Bessa é um nome importante nessa trajetória. Muito mais dele poderia ser dito, se espaço houvesse: foi político, juiz (primeiro presidente do Tribunal de Apelações do Estado de Sergipe) e jornalista. O maior fórum de Aracaju leva o seu nome. Apesar do reconhecimento de seus concidadãos, sua memória foi desrespeitada, infelizmente. Recentemente, seu túmulo no Cemitério Santa Isabel foi encontrado em estado deplorável, com a lápide quebrada e alguns ossos desaparecidos. Após essa triste descoberta, a Academia Sergipana de Letras, que o tem por patrono da cadeira número seis, conseguiu autorização dos descendentes dele e o consentimento do Judiciário para que seus restos mortais fossem inumados no fórum, sob o seu busto. 

A história jurídica do Brasil é fértil em episódios de bravura e abnegação. No entanto, esses numerosos exemplos de virtude caem no esquecimento. Nossa cultura jurídica atual parece abominar tudo aquilo que não seja estritamente prático e imediato, supondo tertúlia o que não puder servir para marcar um “x” numa prova de concurso ou que não ajude a resolver prontamente um processo judicial.