A crescente expansão do chamado “constitucionalismo de emergência” no Brasil tem revelado um fenômeno inquietante e, de certo modo, silencioso: aquilo que deveria funcionar como instrumento excepcional para a gestão de crises agudas vem se convertendo, pouco a pouco, em um método ordinário de governo e de jurisdição. Medidas concebidas para operar apenas em momentos de ruptura institucional, calamidades ou ameaças graves à ordem constitucional passam a ser mobilizadas em situações corriqueiras, num processo que naturaliza a excepcionalidade e fragiliza a própria ideia de normalidade democrática. A proliferação de decisões estruturantes, especialmente no âmbito do Judiciário, ilustra com vigor essa transformação. Em tese, tais decisões oferecem soluções para problemas persistentes em políticas públicas, impondo obrigações contínuas, planos de ação e monitoramento prolongado. No entanto, seu uso frequente tem ampliado de maneira considerável o alcance da intervenção judicial em esferas que, originalmente, pertenciam ao espaço político-eleitoral. Quando o Judiciário, diante da omissão do Executivo ou da paralisia do Legislativo, assume para si a tarefa de formular e conduzir políticas públicas complexas, o faz legitimado pela falha dos demais Poderes — mas, paradoxalmente, ao realizar esse preenchimento, altera a própria lógica do arranjo constitucional, deslocando o centro das decisões para fora do processo democrático ordinário. É nesse ambiente de excepcionalidade contínua que a separação de Poderes se torna mais fluida e, ao mesmo tempo, mais vulnerável. A Constituição prevê mecanismos de controle recíproco, mas não imaginou que um deles viesse a operar permanentemente em modo emergencial. Quando medidas extraordinárias se tornam rotina, o sistema de freios e contrapesos perde precisão: não se trata mais de conter excessos pontuais, mas de gerenciar um quadro crônico de disfuncionalidade institucional. A consequência inevitável é o alargamento de fronteiras de atuação, especialmente do Poder Judiciário, que passa a arbitrar desde impasses federativos até a formulação de políticas setoriais — sempre sob o argumento de que o vácuo normativo ou administrativo exige resposta imediata. A insegurança jurídica é o produto mais evidente desse cenário. Decisões abertas, de execução prolongada, frequentemente sujeitas a revisões, criam um ambiente em que normas derivam mais de ordens judiciais específicas do que de legislação estável e prospectiva. A temporalidade das emergências, ao se perpetuar, impede que atores públicos e privados planejem com segurança; gestores governam sob o risco de mutações repentinas no entendimento jurisprudencial, e cidadãos se veem submetidos a um ordenamento que oscila entre a letra da lei e a excepcionalidade judicial. A erosão da previsibilidade gera um ambiente que, embora bem intencionado na busca por correção de falhas estatais, acaba por corroer o próprio valor da legalidade como fundamento do Estado de Direito. A repetição da excepcionalidade produz um efeito corrosivo: o país passa a funcionar sob normas implícitas, dependentes de ciclos de interpretação e de contínua revisão judicial, tornando a Constituição uma moldura flexível adaptada às urgências do momento. O desafio contemporâneo, portanto, não é negar a utilidade — e até a necessidade — de respostas emergenciais em contextos críticos, mas impedir que a excepcionalidade se transforme em regra e que a Constituição seja lida sob o prisma constante da urgência. O país precisa reencontrar a normalidade constitucional como parâmetro de atuação dos Poderes, restituindo ao Legislativo sua centralidade deliberativa, ao Executivo sua responsabilidade de formulação de políticas públicas e ao Judiciário seu papel de guardião, e não gestor, da Constituição. Em tempos de crises sucessivas, é tentador delegar ao Judiciário a tarefa de resolver o que os demais Poderes não enfrentam; mas essa delegação, quando reiterada, compromete a própria arquitetura democrática que se pretende proteger. É preciso, portanto, recuperar a confiança no funcionamento ordinário das instituições, pois a estabilidade não decorre da multiplicação de medidas excepcionais, mas da fidelidade à Constituição em sua feição mais simples e, paradoxalmente, mais difícil: a de ser a norma da normalidade.