ARACAJU/SE, 21 de novembro de 2024 , 6:19:31

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Quem nos protegerá da bondade dos bons?

Infeliz do país que precisa de heróis, especialmente quando quem é alçado ao posto de salvador da pátria é um juiz. Os integrantes da magistratura não ocupam suas relevantes funções públicas, com as prerrogativas da vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos e uma série de limites éticos a serem observados, para serem heróis.

Muito ao contrário. Deve o juiz portar-se com comedimento, evitando virar protagonista dos processos que atua, buscando sempre falar nos autos e não em entrevistas, podcasts, simpósios, etc., mantendo a imparcialidade em seus gestos, atos e decisões.

Faz-se essa óbvia afirmativa antes de se narrar com perplexidade o que vem acontecendo no bojo do Inquérito nº. 4.781/DF que tramita no Supremo Tribunal Federal. Batizado de “Inquérito das Fake News”, cuida-se de procedimento inquisitorial instaurado para investigar, em sua grande maioria, pessoas sem foro por prerrogativa de função (blogueiros, influencers, empresários, partidos políticos, até Elon Musk já entrou neste inquérito), deflagrado de ofício (art. 43 do Regimento Interno do STF), sendo escolhido a dedo como relator o ministro Alexandre de Moraes.

Deflagrado pela Portaria nº. 69, de 14/03/2019, até a presente data ainda não foi concluído (mesmo passados mais de 2000 dias). O objeto do procedimento apuratório também não fora delimitado, afirmando-se genericamente que pretende “apurar a existência de notícias fraudulentas (fake news), denunciações caluniosas, ameaças e atos que podem configurar crimes contra a honra e atingir a honorabilidade e a segurança do STF”.

Neste contexto, destaca-se que diversos fatos (muitos aparentemente sem qualquer conexão) foram inseridos na investigação que recebeu o epíteto de “Inquérito do fim do mundo”.

Várias as reclamações apresentadas na OAB acerca das dificuldades de acesso aos autos impostas aos advogados dos investigados, em situação de flagrante ofensa as prerrogativas profissionais da advocacia, agasalhadas no art. 7º, I, XIII e XIV da Lei nº. 8.0960/94, demandando atuação do órgão de classe em situações cada vez mais inusitadas, como a tentativa de impedir o contato de clientes com advogado, imputar desconfianças na atuação do advogado, além de minimizar ou praticamente excluir o direito à sustentação oral nos julgamentos colegiados de eventuais recursos (agravos regimentais) das decisões monocráticas do responsável pela condução do inquérito que tem se portado como um xerife, verdadeiro inspetor Javert (célebre personagem de Victor Hugo em sua obra mater – Os Miseráveis), investigador implacável, acreditando no discurso da existência de uma luta do bem contra o mal, sendo que representa o bem tudo que ele faz e o mal toda e qualquer atuação em sentido contrário.

De forma plenipotenciária o ministro designado relator já determinou, na maior parte das vezes atuando de ofício, a decretação de prisões cautelares, a realização de buscas e apreensões, promoveu a quebra de sigilo bancário e telemático, ordenou a retirada do ar de páginas da internet e suspensão de perfis das redes sociais, fixando elevadíssimas multas, impôs restrições contra vários sites e até suspendeu a veiculação de matéria jornalística de revistas e periódicos.

Cuida-se do exercício de poderes autocráticos, desempenhados por um relator que, em parte, valeu-se do conturbado momento político, da instabilidade institucional e da omissão do Ministério Público quando representado pelo ex-Procurador-Geral da República que se esforçou enormemente para envergonhar sua instituição, deixando de cumprir seu papel constitucional, configurando estes atos verdadeiros atropelos, situações em que aparentemente tem se defendido que os fins justificam os meios.

Mesmo que em determinado momento a postura firme e corajosa do relator tenha sido justificável e até elogiável, passou do momento de um basta neste inquérito. Afigura-se como intolerável permitir em pleno estado democrático de direito a existência de investigação infindável, sigilosa, sem delimitação de seu objeto e com seríssimas violações às garantias fundamentais, restando evidenciado que em alguns casos o ministro relator figura como vítima, investigador, acusador e julgador, configurando uma inaceitável confusão ou superposição de papéis.

Evidente que os reprováveis fatos praticados no dia 08 de janeiro de 2023, liderados por integrantes de grupos de extrema-direita que almejavam concretizar um golpe de estado, culminando em um ataque orquestrado aos poderes da República, invadindo, depredando e agredindo o Congresso Nacional, o STF e o Alvorada, deram força a esse malfadado inquérito, que inclusive foi apreciado de forma colegiada, tendo o plenário do STF, por ampla maioria, reconhecido sua constitucionalidade, usando precipuamente o argumento da autodefesa institucional e a proteção constitucional da democracia.

Ocorre que a proteção da democracia somente se configura com o respeito às garantias fundamentais, inclusive e principalmente a da ampla defesa, quando a atuação jurisdicional deve ocorrer com absoluta transparência, observando ritos processuais, respeitando os prazos e assegurando o cumprimento das liberdades individuais.

Qualquer atuação fora deste roteiro é abusiva e injustificável, ainda que exercida com o uso do escudo de proteção das instituições e de defesa da democracia.

Aplicar o sistema acusatório e todos os seus princípios, a exemplo da distinção entre as funções de investigar, acusar e julgar, inércia da jurisdição reservando a iniciativa probatória às partes, respeito a paridade de armas (par conditio) entre acusação e defesa dispensando tratamento igualitário, atuação do juiz como intercessor imparcial, observância dos ritos processuais, do devido processo legal e seus consectários lógicos (contraditório e ampla defesa), fundamentação adequada das decisões judiciais, tudo feito em um procedimento público, restando observado o livre convencimento motivado das decisões.

Somente o respeito estrito a referidas garantias constitucionais pode proteger a defesa da democracia. Não é preciso voluntarismo, excesso de valentia e atos de heroísmo. Nada disso deve ser superestimado.

Embora se reconheça a coragem de alguns ministros em momento crucial para a democracia brasileira, devendo ser repudiado qualquer ataque a um poder constituído que ultrapasse os limites da liberdade de expressão, essa situação embora grave e reprovável, não autoriza que a Suprema Corte passe a ter superpoderes e deixe de respeitar o sistema acusatório e as garantias constitucionais.

Vivemos um paradoxo: sendo o Supremo Tribunal Federal uma Corte Constitucional e também recursal, responsável por em última instância determinar a completa aplicação da Constituição Federal, a quem recorrer quando os abusos são praticados no âmbito do próprio STF? Identicamente ao que questionava o poeta romano Juvenal, seria o caso de perguntar: quem fiscaliza o fiscal (quis custodiet ipsos custodes)?

É preciso repetir de forma uníssona que a todos os investigados e acusados, ainda que suspeitos de terem praticados as condutas mais reprováveis e abjetas, devem ter assegurado o devido processo legal, fazem jus a um sistema acusatório, não merecem ser submetidos a uma investigação interminável (inquérito não é devassa), feita por autoridade incompetente, suportando medidas cautelares infindáveis, sofrendo restrições excessivas, tudo isso sem uma acusação formal, em feito desprovido de transparência, havendo um acúmulo de funções entre quem investiga, acusa e julga.

Preconiza o velho ditado popular “De boas intenções o inferno está cheio“. Ainda que na origem tenha existido uma genuína defesa e proteção das instituições democráticas, autorizando a abertura deste inquérito, já passou da hora de colocar um ponto final. Não existe justificativa idônea que legitime a manutenção de procedimento interminável com suspeita de abusos os mais variados.

A ninguém aproveita a violação das garantias e o aplauso ao arbítrio. Ao invés de gerar heróis, podemos estar criando monstros que podem devorar a nossa frágil democracia.