ARACAJU/SE, 26 de agosto de 2024 , 10:04:45

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Revolução, golpe e ditadura

 

Em um momento em que o Supremo Tribunal Federal julga os fatos de 8 de janeiro passado e os classifica juridicamente como crimes de abolição violenta do Estado de Direito e golpe de estado, cabe rememorar um episódio histórico nacional que conjugou, acima de qualquer dúvida, as duas coisas.

Júlio Prestes (1882-1946) e Vital Soares (1874-1933) foram eleitos em 1º de março de 1930 presidente e vice-presidente da República. Não demorou e sobreveio um movimento armado de contestação do resultado das eleições e de deposição do presidente Washington Luís.

Na vanguarda da insurreição, estavam elites regionais insatisfeitas (porque não conseguiam ditar os destinos nacionais), a jovem oficialidade militar (que postulava uma autocracia que afastasse os velhos políticos do poder), e, finalmente, políticos liberais (que não estavam de acordo com a formatação do sistema político vigorante até então).

Esses heterogêneos e conflitantes setores vencidos no pleito não reconheceram o êxito eleitoral das candidaturas de Prestes e Soares, alegando – com indiscutível razão – a ocorrência de fraudes – que, sem embargo, também foram praticadas nos estados administrados pela oposição vencida (Paraíba, Minas Gerais e Rio Grande do Sul).

Apesar de Getúlio Vargas (1882-1954), o candidato presidencial oposicionista batido na disputa eleitoral daquele ano, haver reconhecido o resultado do pleito, isso não foi suficiente para que outros derrotados o fizessem. Pela primeira vez na história, uma eleição presidencial foi contestada com rebelião violenta dos sobrepujados nas urnas (trapaceadas, relembre-se).

Em 26 de julho, na Confeitaria Glória, em Recife, deu-se o assassinato de João Pessoa (1878-1930), presidente da Paraíba, postulante a vice-presidência da República no grupo de Vargas (a Aliança Liberal), por disparos de João Dantas (1888-1930), outro político paraibano, por razões locais e passionais. Após preso, o homicida foi espancado e morto. Com tais fatos postos, a conspiração usou o episódio para comover adeptos. A revolta ganhou o fôlego que faltava para fermentar a sublevação e entrar em marcha. O movimento pretendia derrubar o governo e empossar o grupo oposicionista.

Conseguiu. Iniciada a insurreição em 3 de outubro, ela foi aos poucos tomando corpo até que finalmente alcançou o Palácio do Catete. O comando das Forças Armadas, percebendo a evolução da guerra civil e a iminência da derrota do governo, antecipou-se à chegada dos revoltosos à Capital, depôs e prendeu o presidente da República. Uma junta militar formada por Tasso Fragoso (1869-1945), Mena Barreto (1874-1933) e Isaías de Noronha (1874-1963) assumiu o governo do país em 24 de outubro e entregou a chefia da nação a Getúlio Vargas em 3 de novembro.

A administração recém instalada avocou, de imediato, poderes discricionários. Em português claro: a Constituição de 1891 tornou-se um espectro, dado que não prevalecia contra a vontade do Executivo e o Judiciário não podia apreciar a juridicidade dos atos de exceção. O Legislativo estava dissolvido. Vargas poderia ter dito: “o Estado sou eu”.

O Decreto 19.398, de 11 de novembro de 1930, materializava esse poder ilimitado. Ele assinalava, em seu artigo inicial: “O Governo Provisório exercerá discricionariamente, em toda sua plenitude, as funções e atribuições, não só do Poder Executivo, como também do Poder Legislativo, até que, eleita a Assembleia Constituinte, estabeleça esta a reorganização constitucional do país.”

Os poderes legislativos federal, estaduais e municipais, como dito, foram dissolvidos (art. 2º). Todos os governos estaduais foram entregues a interventores nomeados diretamente por Vargas. Os prefeitos municipais, por sua vez, foram nomeados pelos interventores. Nada de eleições, portanto (art. 11).

Para que não houvesse dúvidas de que se tratava de uma ditadura, criou-se, na mesma peça normativa, um “Tribunal Especial” para processo e julgamento de crimes políticos, funcionais “e outros”. Assim, aos adversários, a quem ousasse resistir, contestar ou de qualquer modo enfrentar o novo governo, havia a ameaça de um tribunal de exceção, sob uma lei penal feita “ad hoc” (art. 16). Para completar, a garantia do “habeas corpus” também estava excluída quanto aos atos dessa corte (art. 5o, parágrafo único).

Vargas era, por conseguinte, um ditador plenipotenciário. Isso, por estranho que soe hoje, não era unanimemente condenado. Antes o contrário: de modo geral, a opinião pública majoritária não via nisso um problema maior. Era, dizia-se, uma necessidade.

Os poderes discricionários – absolutos – do presidente eram, inclusive, aplaudidos por parte da opinião pública, que os defendia como condição necessária para renovar o ambiente político e jurídico da nação, superando o que havia desde a Proclamação da República. Os acenos sociais como a criação dos ministérios do Trabalho, Indústria e Comércio e da Educação e Saúde Pública garantiam ao presidente a base de sustentação popular que lhe estabilizava no governo.

Havia, no horizonte, a visão de uma reconstitucionalização, que, nada obstante, não tinha data exata para vir. Os militares – convertidos em interventores dos Estados – não a desejavam. Os liberais, por outro lado, cobravam-na. Getúlio se equilibrava entre essas duas tendências.

Para a constituinte, dependia-se, entre outras coisas, de uma legislação eleitoral a ser produzida, de modo a superar os vícios do regime que o movimento revolucionário derrubou. A chave cronológica, portanto, estava no tempo de produzir essas regras eleitorais.

Pelo Decreto 19.459, de 6 de dezembro de 1930, Vargas criou a Comissão Legislativa, que promoveria novas legislações civil, penal e processual. Em sequência, pelo Decreto 19.684, de 10 de fevereiro de 1931, foram formadas 19 subcomissões temáticas. Na subcomissão eleitoral, são indicados para redigir o novo regramento Assis Brasil (1857-1938), João Chrysóstomo da Rocha Cabral (1870-1946) e Mario Pinto Serva (1881-1962).

O Código Eleitoral somente será materializado pelo Decreto 21.076, de 24 de fevereiro de 1932. Nele haverá novidades significativas: voto secreto, feminino, representação proporcional e uma Justiça Eleitoral, para validar o resultado das eleições.

Os detalhes do trabalho do grupo de juristas e como essa legislação foi construída ficam para outra oportunidade. Por ora, conclua-se com a exótica constatação de que o Brasil é um paradoxal país em que um golpe de estado, acompanhado de uma guerra civil, foi dado para que, entre outras coisas, uma legislação eleitoral mais moderna que a antes existente fosse outorgada por um ditador.