ARACAJU/SE, 21 de novembro de 2024 , 7:21:19

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“Selva”: o desvirtuamento da saudação militar para confirmar tenebrosas transações

O uso da expressão “Selva” no meio militar consiste em saudação vibrante e efusiva, capaz de identificar os valores da caserna, tais como o patriotismo, à disposição para o combate e coragem na defesa do país.

Segundo o Exército Brasileiro, a popularização deste termo surgiu no Centro de Instrução de Guerra na Selva, localizado na floresta amazônica, referindo-se ao destino de parte da tropa que tem como missão defender nossas fronteiras, além de levar assistência às comunidades isoladas.

Referido cumprimento, destacado como um símbolo militar que evidencia seu próprio ethos, passou a ter usos menos nobres por parte do capitão Bolsonaro, ex-presidente da República que apesar de origem e formação militar, certamente não incorporou os valores dos quartéis na sua atuação política.

Ao concluir a investigação batizada de “Lucas 12:2” (Inquérito nº. 4.874/DF), apuração deflagrada para averiguar a destinação das jóias e demais presentes de valores elevadíssimos, recebidos pelo ex-presidente, doados principalmente por reis, príncipes e sheiks árabes, a Polícia Federal elabora minucioso relatório, sendo o resultado final encaminhado ao Supremo Tribunal Federal.

Ao receber os autos o ministro relator do inquérito apreciou um pedido de acesso e publicidade do procedimento policial (Petição nº. 11.645), e, com amparo no art. 93, IX, da Constituição Federal, prolata decisão afastando o sigilo de parte da investigação, sendo divulgadas as análises policiais e o relatório conclusivo da apuração inquisitorial.

Eis que dentre as inúmeras provas coletadas pela Polícia Federal, a exemplo de documentos oficiais, e-mails, depoimentos de testemunhas, acordos de colaboração premiada, laudos periciais em equipamentos de informática apreendidos, mensagens de texto trocadas entre os investigados, cujo sigilo fora afastado por força da interceptação telemática – art. 5º, XII da CF combinado com a Lei nº. 9.296/96, etc., o país passa a ter conhecimento do modus operandi utilizado pelo ex-presidente da República, com a ajuda de seus assessores mais próximos, voltados para o propósito de desviar e vender as jóias e outros presentes vultosos que deveriam ser incorporados ao acervo da União, inexistindo dúvida que sobreditos bens não pertencem ao patrimônio pessoal, privado e individual do ex-mandatário.

Dentre as mensagens transcritas no relatório policial, uma merece destaque. Cuida-se do envio pelo Ten. Cel. Mauro Cid, ex-ajudante de ordens do presidente, de um link do site de uma casa de leilão de jóias, informando que o kit presenteado pelo príncipe da Arábia Saudita estava entre os objetos a serem leiloados e que seria possível acompanhar o leilão e ofertar lances pela internet.

O ex-presidente ingressou em referido link apenas 21 minutos após receber a mensagem, conforme comprovam os “cookies” identificados pela perícia do Instituto Nacional de Criminalística da Polícia Federal. Os cookies são arquivos trocados entre uma página web e o navegador para facilitar o acesso e intercambio de outras informações.

Considerando que a mensagem enviada partiu de contas pessoais mantidas em aplicativo (protegidas por senha, inclusive), remetidas pelos telefones individuais e privados do ajudante de ordens e do ex-presidente (também resguardados por senha) e, considerando a comprovação pericial da visualização das mensagens e dos cookies de acesso ao link, sob o aspecto probatório, resulta lógico e evidente que os interlocutores dispunham da ciência da prática delituosa (disponibilização em leilão de jóias desviadas/apropriadas).

A situação ganha maior consistência e contornos de certeza processual probatória, restando demonstrado o dolo direto dos agentes, notadamente quando o ex-presidente responde a mensagem de seu ajudante com a expressão “Selva”.

Militares das mais variadas patentes, especialmente da cúpula das Formas Armadas, acharam uma boa idéia o envolvimento com a política miúda, entenderam adequado participar ativamente da partilha de cargos públicos – ocupando, inclusive, várias funções tradicionalmente desempenhadas por civis, acreditaram que poderiam se aproximar intimamente de gente que homenageia torturador, miliciano e outros malfeitores e que nada respingaria na imagem, honra e pundonor militar.

O resultado está nesta mensagem. O termo “Selva”, expressão que foi concebida para evidenciar o brio dos militares, passou a ser usado para confirmar transações tenebrosas e nada republicanas, evidenciando a miséria da política e dos políticos brasileiros, sempre preocupados em lacrar e lucrar, usando a res publica como verdadeira cosa nostra.

Que sirva de lição para a posteridade e que os militares verdadeiramente vocacionados à carreira aprendam que as Forças Armadas não têm partido, ideologia e lado político, elas são instituições republicanas, impessoais e voltadas para a prática de serviço público essencial e destinado ao bem comum.

Ninguém pode se apropriar do estado e de seus órgãos permanentes. Pensar o contrário implicaria permitir que essa prática espúria, seja tolerada, repetida e normalizada.

Os militares devem trilhar o caminho que leva à sua missão originária, servindo a todos, indistintamente, evitando imiscuir-se na política partidária, não adentrando em disputa eleitoral, exigindo o respeito à hierarquia e disciplina em seu proceder, atuando com coragem e ética.

Somente quando dissipada essa vergonha, extirpando-se o aparelhamento das instituições, será possível saudar um militar brandindo um “SELVA”. Até lá, fica a lembrança dessa mensagem indecorosa que maculou a imagem das Forças Armadas e de seus integrantes.