ARACAJU/SE, 11 de maio de 2025 , 10:54:38

Sergipanidade e “Moeda Vencida”

Terça-feira, 24 de outubro. Dia da Sergipanidade, que, outrora, era feriado estadual. Mas, qual o sentido de dois feriados para celebrar a emancipação política sergipana? Um é bastante. Ficou o 8 de julho. A expressão sergipanidade leva-me a rememorar o acadêmico Luiz Antônio Barreto, um nome a figurar para sempre no panteão da cultura da terra de Tobias Barreto.

Estou em um voo, indo a Porto Alegre. Enfim, concluindo a leitura do romance “Moeda Vencida” de Francisco J. C. Dantas, o seu penúltimo livro, já que, com certeza, outros virão. Recebi o exemplar por especial deferência do autor, com a seguinte dedicatória: “Ao doutor, eclesiástico e escritor José Lima de Dores, lembrando a antiga amizade”. Deveras, a amizade entre nós, incluindo sua estimada esposa, a poeta Maria Lúcia Dal Farra, data de 1993, quando ele lançou o romance “Os Desvalidos”, sobre o qual, à época, eu escrevi um texto simplório. E que gratíssima amizade me une ao distinto casal! 

Ler os livros do professor Francisco Dantas é um deleite, igual ao de uma criança que degusta um caramelo. E este “Moeda Vencida” deixou-me enternecido. Puxa, que romance! Reminiscências mescladas com esplendorosa ficção. Um professor bajulado por seus pares no momento da aposentadoria. Ele, o narrador, evocando a figura do pai, homem correto nos seus teres e haveres, nos dizeres e fazeres. Homem do campo, a lidar com os animais, a eles dedicando seu cuidado e sua ternura. 

No meio da trama, um sujeito que não me fez cócegas, não se ajeitou no meu quengo de leitor de terceira categoria, um tal de Duarte Pirão. Detestei o cabra, que se esfacelou ao ser atirado, por escrupulosa medida, do lombo do cavalo Suveni, que sofrera horrores em mãos malfazejas, antes de ser comprado pelo velho Desidério. 

A narrativa de Dantas é primorosa. Deixou-me sem fôlego. Ah, linguajar danado de atrevido, de rebuscamentos tão achegados a nós interioranos desta terra do Rio dos Siris! Linguajar de dar marejamentos nos olhos, impondo-lhes uma librina, quase fazendo escorrer uma lagrimazinha de cada órgão ocular, tanto é o uso do glossário sergipanês mais autêntico a penetrar no imo do coração de quem cultiva os falares do povo. 

Dois personagens chamaram-me a atenção, em especial: o mencionado cavalo Suveni e o jegue Capitão. Ambos humanizados, tanto quanto a cadela Baleia de “Vidas Secas”, ou até mais. Capitão “Era um jeguinho invocado. Vezes que, ao emparelhar com alguém desprevenido, resvalava-lhe o par de barris (que, em Dores, minha terra, se chamam ancoretas) tirando fino. Raspava no fulano com tamanha classe, com tal precisão que mal o tocava com a parte mais abaulada e saliente dos barris. Era o seu jeito de fazer uma caçoada”. Que jumento! 

Ao falar de Capitão, o autor evoca a lembrança de dois outros jumentos afamados na literatura: o burrinho pedrês, de Guimarães Rosa, e Platero e eu (Platero y yo) de Juan Ramón Jiménez, poeta espanhol, Nobel de Literatura de 1956.

Em Guimarães, Sete-de-Ouros, um burrinho já idoso, desacreditado, é escolhido para servir de montaria num transporte de gado. Na travessia do Córrego da Fome, que pela cheia transformara-se em rio perigoso, vaqueiros e cavalos se afogam. Salvam-se apenas Badu e Francolim, um montado e outro pendurado no rabo do burrinho. Já em Jiménez, “Platero y yo”, de 1914, é uma narrativa que recria poeticamente a vida e morte de um animal de estimação, o burro Platero. É célebre o parágrafo onde está dito que “Platero é pequeno, peludo, suave, tão macio por fora, que se diria todo de algodão”. 

Pois bem. Capitão era muito mais. “Jeguinho inteligente e obstinado! Tinha a cabeça boa”. Na sujeição da jornada dobrada, transportando água para as casas dos fregueses do seu dono, chamado Prego, Capitão “Não dava ousadia a alguém o interromper”. Todavia, o animal teria um fim trágico. Depois de desaparecer, fora encontrado boiando “com aquele barrigão despamparado”, fedendo a defunto. 

No finalzinho do livro brilha a intuição do cavalo. Madrugada antevendo a manhã, “numa hora librinosa”, Desidério segue montado em Suveni. “De repente, ao rentearem um capão de mato meio fechado, o cavalo olha de meia esguelha, farisca os ares e assopra com as orelhas caídas sobre o pescoço; morga o corpo de banda num susto que é pedido de ajuda ao cavaleiro”. Suveni dera conta de algo, ali amoitado. Era a vaca Flor do Pasto que acabara de parir um bezerrinho aleijado. 

Véspera do Natal. Dantas arma um presépio, na sua bela narrativa, com os componentes que tem à mão. Extraordinária figuração. É preciso ler. É preciso sentir. É preciso deixar-se enternecer. A última frase do livro é uma sentença alertadora: “Os bichos enxergam longe…”. Sim, enxergam. Mais que os humanos. Muito mais. Porém, Francisco J. C. Dantas é um dos romancistas brasileiros que mais longe enxergam. Aplausos!