Em março de 2014, nos 50 anos do golpe militar de 1964, uma estranha agitação de pessoas que, sem nenhum constrangimento, mobilizavam-se para defender não apenas o golpe como também a ditadura militar que perdurara até 1985 – mas de cuja herança autoritária ainda não nos livráramos em definitivo – gerava preocupação e perplexidade nos segmentos humanistas e democráticos da sociedade.
Afinal, não é natural a defesa de um regime político de terror, de repressão, de supressão das liberdades (públicas e individuais), de práticas sistemáticas das mais diversas formas de tortura física e psicológica, homicídios, desaparecimentos forçados, ocultamentos de cadáveres e de uso da força desmedida e ilimitada contra opositores políticos, censura prévia aos meios de comunicação e manifestações artísticas, entre outros tantos inúmeros, inaceitáveis e indefensáveis males de um período nefasto de história.
Por ocasião dos 60 anos do golpe, o quadro infelizmente se deteriorou ainda mais, e aqueles grupos de pessoas mais dispersas se transformaram em quadros organizados da atuação política nacional, em defesa aberta do golpe e da própria ditadura militar, chegaram a ocupar cargos estratégicos na Administração Pública e posições políticas de destaque no sistema representativo nacional, de onde orquestram ideologias militaristas a se espraiar indevidamente sobre as esferas civis e políticas, articulam e tentam desferir golpe de Estado, como a intentona de 8 de janeiro de 2023.
Se há dez anos era imperiosa a adoção de medidas proativas com vistas a reverter esse quadro, aos 60 anos do golpe militar isso se torna condição permanente de manutenção do Estado Democrático de Direito e de vigilância firme e cotidiana contra o retorno ao estado ditatorial repressor.
Com efeito, os déficits da democracia ainda em consolidação devem ser solucionados pela via democrática e não pela via autoritária. É preciso avançar nas conquistas democráticas e não abrir mão delas. Combater o retrocesso é dever cívico.
Uma boa pauta em busca dos necessários avanços democráticos – e, ao mesmo tempo, de repúdio aos ensaios golpistas que cada vez mais emergem das profundezas – deve abranger, minimamente, os seguintes aspectos:
- O resgate sério e efetivo da memória histórica do período de terror; somente o pleno conhecimento da história, com acesso efetivo aos documentos e provas existentes, será capaz de manter informadas as gerações presentes e futuras para que fiquem eternamente vigilantes em defesa da democracia. Nesse sentido, é preciso ir mais além do trabalho realizado pela Comissão Nacional da Verdade; e, nesse sentido, lamentável a decisão do Governo Federal em determinar que as instâncias do Poder Executivo não façam qualquer evento ou alusão à data, ainda que no viés crítico de manter viva na memória coletiva a consciência do horror passado, para que nunca mais aconteça;
- O efetivo processamento e julgamento dos torturadores. A impunidade da tortura do passado, que faz com que se conviva naturalmente com torturadores como se nada de mal à humanidade tivessem feito, leva à manutenção da sua prática no presente e no futuro. Embora não desenvolvidas de modo institucional e articulado por organismos estatais, são conduzidas isoladamente por agentes públicos que, talvez levando em conta o passado, acreditam e confiam na impunidade de tais crimes;
- A desmilitarização da polícia. Polícia militar é resquício autoritário da ditadura. Democracias consolidadas em poder civil devem ter suas polícias a atuar sob perspectiva constitucional da segurança pública, para atendimento de suas finalidades democráticas essenciais, limitando o papel das Forças Armadas à defesa da soberania territorial e das fronteiras;
- Defender o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa, permanentemente, sem seleção de classe e/ou prestígio social ou poder econômico. A vigilância cívica das garantias contra os abusos de poder não pode se limitar aos casos em que eles ocorrem contra pessoas influentes ou que têm maior visibilidade pública, mas se estender permanentemente aos casos em que, infelizmente, nas periferias, atingem os marginalizados, explorados e esquecidos do sistema sócio-político-econômico;
- Efetuar reforma política efetiva, que coíba a nefasta influência do poder econômico no processo eleitoral e, mais importante ainda, que efetive os mecanismos constitucionais de democracia participativa.
Essas são premissas essenciais para que retrocessos autoritários sejam descartados. Somente eliminando por completo as nefastas heranças de uma transição “lenta, gradual e segura” será realmente viável avançar nas conquistas democráticas. Às vésperas dos sessenta anos do golpe militar, é preciso bradar, permanentemente: Brasil, ditadura nunca mais!