ARACAJU/SE, 7 de setembro de 2024 , 21:19:19

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Tamancos de Propriá

Ali está o rio São Francisco. Propriá, ou, no passado, Santo Antônio do Urubu de Baixo. Rio grandioso para boa parte do Nordeste, desde Minas Gerais, daí ser o rio da unidade nacional. No meu tempo de menino, pude ver automóveis, inclusive caminhões, saírem de Nossa Senhora das Dores com destino a Propriá, para se acompanhar a cheia do rio. As pessoas achavam bonito ver o Velho Chico botar água em grande extensão, de largo, como se fosse um mar.

Eu tinha vontade de ver aquele espetáculo. Sempre fui fascinado pelas águas correntes, embora, extremamente medroso com relação às mesmas. Basta que me lembre do barulho que, nas enchentes, as águas do açude faziam, ao despencarem nos degraus do Trampolim, nascente do riacho do Gonçalão, para nós dorenses, mas, geograficamente, nascente do rio Siriri Morto, que, com o rio Siriri Vivo, formam o rio Siriri, afluente do rio Japaratuba.

Eu e meu irmão íamos à Fateira do Açude, para apanhar raspa de fato de boi que servia de alimentação aos porcos, misturada com farelo de milho, mais consistente e mais caro do que o farelo de trigo. Mamãe engordava os porcos para, com a venda, após a engorda, adquirir os cortes de tecido que serviriam para a confecção das roupas a serem usadas na Festa da Padroeira, em setembro, e nas festas do Natal e Ano Novo. Sem roupas novas, os dois filhos de Dona Pastora não botavam os pés na Praça da Matriz, nas referidas festas.

O barulho das águas no Trampolim, edificado pelo Cônego Miguel Monteiro Barbosa, então intendente municipal, na década de 1930, era ensurdecedor. Ouvia-se ao longe. Na verdade, o Trampolim era, sim, um trampolim para as pessoas de lá de cima se atirarem nas águas do açude, recuperado pelo cônego-intendente, após a grande seca de 31/32. Segundo documentos históricos, aquela área, fora, outrora, o arrozal da fazenda João Ventura, isso nos idos do século XIX. Junto ao trampolim, foi erguida uma barragem para conter as águas do açude, onde nasce, como foi dito, o mencionado rio Siriri Morto.

Propriá. O que mais eu lembro dessa cidade ribeirinha, cuja decadência econômica deu-se com a ponte ligando Sergipe a Alagoas, pois a grande movimentação que essa cidade sergipana tinha, fazendo ativar o comércio local, foi perdida com a ponte, era dos seus famosos tamancos. Registrando que os veículos que atravessavam o rio por meio de balsas, passaram a não mais ter que adentrar na cidade de Propriá, prejudicando a economia local.

Ah, os tamancos de Propriá! Os famigerados tamancos. Eu morava, como, aliás, ainda moro, no meu berço natal, o João Ventura, subúrbio transformado em bairro, por força de lei municipal, datada de 1974. No inverno, lá eu ia para a escola da professora Maria da Glória Santos, que entrou para o magistério estadual em 1929, obra do presidente em exercício do Estado, Chico Porto, presidente da Assembleia Legislativa em substituição ocasional ao presidente Manoel Dantas. Aposentada da rede pública estadual, a professora Glória lecionava em sua escola particular, numa turma multisseriada. Nessa escola, eu estudei em 1963 e 1964, 1º e 2º anos do ensino primário.

No inverno, eu ia à escola, na Praça da Matriz, calçando tamancos de Propriá. Os desgraçados salpicavam respingos de lama nas minhas canelas pretas. Chape-chape-chape… O canto dos benditos tamancos. Ao chegar na pracinha de “seu” Tota (Antônio dos Reis Lima, antigo chefe político do PR dorense), havia uma poça d’água. Ali, eu me abaixava e, com a água empoçada, lavava as canelas, retirando os respingos da lama escura.

Eu detestava os tamancos de Propriá. Detestava ter que lavar as canelas na poça da pracinha de “seu” Tota, para não chegar à escola lambuzado de lama. De toda forma, os tamancos de Propriá eram de grande utilização pelas camadas pobres e, sendo confeccionados com boa cepa de madeira fornida, além de durarem, eram propícios para enfrentar a lama.

O tempo passou. A pavimentação foi estendida da confluência da pracinha de “seu” Tota para a estrada do Engenho Novo, ou seja, da Rua do Ouro, hoje, Rua Marechal Cândido Rondon, para a Rua Gilberto Amado, designação de 1974, a meu pedido, quando eu trabalhava na Prefeitura Municipal, na gestão do operoso prefeito Paulo Garcia Vieira.

Para trás ficaram os tamancos de Propriá. Nem atino se ainda são fabricados. Provavelmente, não. Sei lá!